10.18601/21452946.n28.10

Direito administrativo sancionador e as agências reguladoras
A experiência brasileira

Sanctioning Administrative Law and Regulatory Agencies in Brazil

Derecho administrativo sancionatorio y las agencias reguladoras.
La experiencia brasileña.

Edilson Pereira Nobre Júnior1

1 Doctor en derecho por la Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil. Post Doctor por el Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Profesor Titular de la Faculdade de Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil. Correo-e: epnobre@outlook.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1808-0275.

Fecha de recepción: 12 de enero de 2022. Fecha de modificación: 24 de marzo de 2022. Fecha de aceptación: 12 de mayo de 2022.

Para citar el artículo: Nobre Júnior, Edilson Pereira, "Direito administrativo sancionador e as agências reguladoras. A experiência brasileira", Revista Digital de Derecho Administrativo, Universidad Externado de Colombia, n.° 28, 2022, pp. 291-316. DOI: https://doi.org/10.18601/21452946.n28.10


RESUMO

O presente texto objetiva examinar a competência sancionadora dos entes reguladores independentes. A análise se direcionará ao modelo brasileiro de agências reguladoras. Serão enfocadas questões inerentes à legalidade, à tipicidade, à proporcionalidade e à consensualidade. Terá lugar a menção à legislação e à jurisprudência, nacional e estrangeira. Quanto à legalidade e tipicidade, serão examinados a reserva de lei, o papel do regulamento e a admissibilidade das normas em branco. A abordagem sobre a proporcionalidade envolverá a análise dos limites mínimos e máximos das multas e a imposição constitucional de tratamento favorecido das empresas de pequeno porte. Será realçada a função da consensualidade no direito administrativo sancionador.

Palavras-chave: Direito Administrativo, agências, competência, sanções, Brasil, regulação.


ABSTRACT

This text intends to examine the sanctioning power of independent regulatory authorities. The analysis will focus on the Brazilian model of regulatory agencies, in particular on issues related to legality, typicity, proportionality and consensus; and mention is made of national and foreign legislation and jurisprudence. In relation to legality and typicity, the principle of legal reserve, the role of the regulation and the admission of blank regulations are examined. Regarding proportionality, this work focuses on the study of the minimum and maximum limits of fines and the constitutional imposition of favorable treatment for small-sized companies. The use of consensus in sanctioning administrative law is also highlighted.

Keywords: Administrative Procedure, Regulatory Agencies, Sanctioning Powers, Due Process, Typicity.


RESUMEN

El presente texto se propone examinar la potestad sancionadora de las entidades reguladoras independientes. El análisis se centrará en el modelo brasileño de las agencias reguladoras, y particularmente en las cuestiones inherentes a la legalidad, a la tipicidad, a la proporcionalidad y al consenso; haciendo mención a la legislación y a la jurisprudencia, nacional y extranjera. En relación con la legalidad y a la tipicidad, son examinados el principio de la reserva legal, el papel del reglamento y la admisión de las normas en blanco. En el despliegue sobre la proporcionalidad tienen lugar el estudio de los límites mínimos y máximos de las multas y la imposición constitucional de tratamiento favorable a las empresas de pequeña dimensión. Por último, en el escrito se subraya el uso del consenso en el derecho administrativo sancionador.

Palabras clave: derecho administrativo, agencias, competencia administrativa, sanciones, Brasil, regulación económica.


Tal como já advertimos em páginas anteriores, o exercício
da competência administrativa sancionadora é um jogo no
qual quase tudo depende do talante pessoal da autoridade
que observa, das circunstâncias políticas, do contexto e das
convicções dogmáticas do juiz competente.
Alejandro Nieto García2

INTRODUÇÃO

A regulação é uma manifestação da atividade estatal que se mostra coetânea ao próprio exercício do poder. Porém, a sua disciplina legal duma forma sistematizada somente emergiu com o Estado de direito3, do qual, da mesma forma, resultou o nascimento do direito administrativo como ramo jurídico autônomo.

Sendo um aspecto vivo do direito administrativo, é típico que oscile com o passar do tempo. Pode ser mais intensa ou não, conforme a mudança do perfil do Estado, sofrendo, assim, influxo do direito constitucional4.

No presente, duas singularidades estão à mostra. A primeira delas é a de que, por força do neoliberalismo, a virtude do momento se direciona à regulação dita independente, a qual se propõe - como se fosse possível à moda de um toque de prestidigitação - ofertar neutralidade política à regulação e, simultaneamente, legar-lhe um viés técnico. Surgem, portanto, os entes reguladores independentes.

Em segundo lugar, é que, diante da complexidade das relações sociais, acumulam-se inúmeras e relevantes funções à regulação, agora a cargo dos referidos entes. Numa objetiva sistematização, Gaspar Ariño Ortiz5 aponta que, além de funções meramente consultivas, às referidas entidades são conferidas inúmeras atribuições, assim dispostas: a) funções arbitrais entre os agentes de mercado; b) funções executivas (regulação de preços e fixação de tarifas, concessão de licenças e autorização de instalações, supervisões de padrões e condições de serviço, e supervisão das empresas no mercado); c) funções operativas, relativas à solicitação de informações, inspeções e sanções; d) funções de elaboração normativa.

Nesse extenso rol de competências, todas de uma indiscutível relevância, desperta atenção para a nossa abordagem a função operativa, precisamente no que diz respeito à imposição de sanções.

A assunção dessa tarefa por entes reguladores, destacados do Governo, e libertos de uma maior fiscalização parlamentar, tem ensejado preocupações6, muitas das quais derivadas da densidade das multas e das restrições de direitos que se têm verificado nos casos concretos. O exemplo estrangeiro respalda a afirmação7.

Daí que nos propomos a investigar, sem uma pretensão exaustiva, alguns aspectos que consideramos controvertidos na competência sancionadora da regulação independente, com um enfoque direcionado ao sistema jurídico pátrio, o qual teve no Plano Diretor da Reforma de Estado de 1995 a motivação para a instituição das agências reguladoras.

Isso se justifica porque a dita independência do regulador não o afasta da vinculação à lei e ao Direito em todas as suas atuações, com especial relevo à punitiva ou de restrição de posições jurídicas subjetivas.

Limitar-nos-emos a traços inerentes às competências das agências reguladoras cujo rol é listado pelo art. 2° da Lei 13.848/20198, num total de 11, não sendo abordada a questão no plano dos estados, Distrito Federal e municípios, bem assim dos entes que, a despeito de relevantíssimas funções regulatórias, não se encontram organizados sob o rótulo de agências, tais como a Comissão de Valores Mobiliários, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica e o Banco Central do Brasil.

Se, por um lado, a restrição acima se justifica para o fim de evitar um discorrer alongado, rápido e superficial, doutro, é de se notar que o enfoque de aspectos gerais, de ocorrência assídua no plano sancionatório da regulação, torna possível o tracejar de balizas que também possam ser aplicadas à atividade dos entes aqui não considerados.

Passemos, então, à tarefa a ser concretizada.

1. LEGALIDADE

Aspecto que, no presente, assoma de relevância é o pertinente ao veículo normativo hábil para tipificar as infrações administrativas e, de conseguinte, cominar as sanções correspondentes. Insta, assim, saber se é a lei formal, incluindo-se os atos com força de lei, ou se tal pode ser também o regulamento, ou seja, aquele editado pela própria agência, no exercício de sua competência normativa.

No cenário pátrio, a importância do debate é elevada à medida que, em se analisando as legislações que tratam das agências enumeradas pelo art. 2° da Lei 13.848/2019, nove delas possuem a disciplina de sua função sancionatória mediante lei, ou ato normativo com força de lei9.

Enquanto isso, duas agências ostentam competência própria para tipificar as condutas capazes de caracterizar infrações administrativas que se encontram no campo da sua atribuição sancionatória, inclusive sendo favorecidas com as receitas decorrentes do recolhimento das multas que irão impor.

É o caso da ANEEL, à qual, por força do art. 3°, X, da Lei 9.427/9610, compete fixar as multas administrativas a serem infligidas aos concessionários, permissionários e autorizados de instalações e serviços de energia elétrica, observado o limite, por infração, de 2 % (dois por cento) do faturamento, ou do valor estimado da energia produzida nos casos de autoprodução e de produção independente, correspondente aos últimos 12 meses anteriores à lavratura do auto de infração ou estimados para um período de 12 meses caso o infrator não esteja em operação ou esteja operando por um período inferior a 12 meses.

Em complemento, a ANEEL editou a Resolução 846/2019, em cujos arts. 5° ao 20 são delineadas as sanções aplicáveis e as correspondentes infrações. Daí a fonte normativa atributiva do poder-dever daquela para infligir, dentre outras, penalidades ou restrições de direito, tais como advertência, multa, embargo de obras, interdição de instalações, obrigação de fazer ou não fazer, suspensão temporária de participação em licitações, revogação da autorização, intervenção e caducidade da concessão ou permissão11.

O mesmo se tem quanto à ANM, havendo atribuído a Lei 13.575/2017, no seu art. 2°, XI, àquela a competência para fiscalizar a atividade minerária, com a possibilidade de imposição das sanções cabíveis, as quais não especifica. Por sua vez, o Decreto 9.587/2018, a pretexto de regulamentar o referido diploma legal, dispõe, no art. 2°, XXIX, que a agência reguladora poderá normatizar as infrações à legislação, o que parece permitir a delineação dos correspondentes tipos sancionatórios.

Feita essa exposição prévia, é de se perquirir se é possível às agências reguladoras estabelecerem, por norma que venham a elaborar, a definição de tipos e suas correspondentes sanções.

A questão passa por saber se incide o princípio da legalidade, especialmente quanto ao seu aspecto formal, que se espraia pela verificação da ocorrência de situação sob reserva legal.

É sabido competir ao ordenamento constitucional positivo definir quais as espécies normativas admissíveis no sistema, bem assim a sua função na regulação da atividade das autoridades públicas e na conformação dos padrões a serem seguidos pela sociedade.

A Constituição de 198812, ao traçar o rol dos direitos e garantias fundamentais, destaca, no inciso XXXIX do art. 5°, que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". A afirmativa, malgrado literalmente dirigida ao direito criminal, a este não se limita.

Não há que se negar - e isso a doutrina é incisiva13 - que os direitos fundamentais de liberdade possuem uma inegável força expansiva, circunstância que, no modelo sancionatório pátrio, encontra fundamento no art. 5°, §2°, da CRFB, ao prescrever que os direitos e garantias explicitados no texto constitucional não excluem outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.

No aspecto que nos interessa, não se pode negar que a legalidade criminal é imanente e contemporânea do Estado de direito, o qual é perfilhado pela CRFB em sua versão atual, podendo-se dessumir que, numa rota evolutiva, é indiscutível extrair-se do mencionado princípio a sua incidência para as sanções administrativas, as quais, nos tempos que fluem, não se limitam a reprimir ilícitos de pequena monta, assiduamente representando a inflição de multas elevadíssimas e de substanciais restrições de direitos14.

É de se destacar, na província doutrinária, o ponto de vista de Egon Bockmann Moreira15. Visualizando a questão sob o pálio do ordenamento brasileiro, igualmente a partir do art. 5°, XXXIX, afirma o autor, sem rebuços, que a competência regulamentar das agências esbarra em matéria sancionatória, sendo inevitável o recurso à teorização desenvolvida no direito criminal. Tal sucede, específica e principalmente, como uma defesa do direito econômico contra as tentações da política econômica, salvaguardando a liberdade dos agentes econômicos diante não somente dos excessos do Estado, mas igualmente dos desvios cometidos pelos detentores do poder econômico16.

Não se alegue, com o propósito de permitir a definição originária de sanções e penas por normas elaboradas pelas agências, que a hipótese se cuidaria do que se denomina de relação especial de poder.

O argumento é frágil. Tais vínculos - que, conforme já se tem exposto, melhor devem ser, na atualidade, identificados como relações jurídico-administrativas especiais17 - sucedem quando o administrado se encontra sob uma relação especial de dependência frente à Administração, o que se verifica, frequentemente, nas situações dos funcionários públicos, dos militares, dos presos e dos estudantes.

Aqui se tem algo diferente - e muito -, estando os liames entre os agentes regulados e a agência representados por um título, contratual ou não (concessão, permissão ou autorização), cujos direitos e obrigações são inicialmente estabelecidos com base em lei, a qual é a fonte para que o regulador possa elaborar suas normas de conteúdo técnico.

Ainda que assim não fosse, e tivéssemos uma indiscutível relação jurídico-administrativa especial, não se poderia respaldar o entendimento que afasta a reserva de lei ou de atos com força de lei para o estabelecimento de sanções, permitindo-se que tal possa ser realizado, duma forma inicial e inovadora, pelas agências.

A tendência atual a impregnar tais relações jurídicas não mais permite a convicção de que as suas bases normativas permaneçam entregues ao domínio reservado da Administração, de maneira que não poderão superar a reserva legal, quando assim dispuser a constituição18. Sendo assim, ainda que se possa sustentar a presença de um vínculo da espécie, é de se concluir que não se poderá ultrapassar o disposto pelo art. 5°, XXXIX, da CRFB19.

É de se enfatizar ainda que a aceitação como válida da atribuição de competência, conquanto por remissão em lei formal, para que as agências criem tipos, e suas respectivas penas, traduz-se num quebrantamento da lealdade que deve permear entre regulador e administrado, à proporção que, no particular das multas, sendo a beneficiária com a sua receita, na maioria das vezes, a própria agência20, a prática pode evidenciar que, diante de uma inaudita e incomum eficiência, esconda-se um desvio de finalidade.

2. TIPICIDADE

A legalidade em matéria de sanções, inclusive administrativas, apresenta duas dimensões principais21. Uma delas, a formal, já vista no tópico antecedente, e a outra, de natureza material, a qual, por envolver aspectos específicos, será tratada de uma maneira autônoma, sob a denominação de tipicidade.

Essa vertente, derivada diretamente do princípio da legalidade, reflete, no dizer de María de Jesús Gallardo Castillo22, a especial transcendência da segurança jurídica nos planos limitativos da liberdade individual e traduz o reclamo incontornável de uma anterior determinação normativa das condutas lícitas e das punições correspondentes, quer dizer, exige a existência de preceitos jurídicos que permitam antever (lex previa) com um grau suficiente de certeza (lex certa) as condutas que ensejam a responsabilidade do agente.

Para Fábio Medina Osório23 a teoria da tipicidade é um fenômeno próprio ao Direito, não estando necessariamente vinculada ao direito criminal, motivo pelo qual os tipos adentram no território do direito administrativo sancionador, desempenhando funções.

A funcionalidade dos tipos sancionadores, segundo o autor24, projeta-se, inicialmente, para a busca da segurança jurídica dos administrados, uma vez a ação descrita previamente em um tipo legal constituir um padrão de comportamento proibido, vedação que é submetida às exigências da publicidade. Isso sem considerar que tal assegura uma previsibilidade mínima acerca das possibilidades de exercício da pretensão punitiva estatal.

Numa segunda ordem de ideias, o tipo exerce a função pedagógica de anunciar formalmente os comportamentos objeto de repreensão, desempenhando um papel preventivo, a traduzir-se numa ameaça legítima para quem pretenda violar o comando normativo.

Decorrente de uma conjugação harmônica entre legalidade e segurança jurídica, a tipicidade é, inquestionavelmente, de incidência no direito administrativo sancionador brasileiro. Especialmente, quanto à atuação sancionatória das agências reguladoras, podemos, a vol d'oiseau, identificar três questionamentos.

Uma primeira observação diz respeito à função dos regulamentos, isto é, das resoluções editadas pela agência reguladora na matéria. A reserva de lei formal não exclui o emprego complementar das normas regulamentares no plano sancionador, os quais podem desempenhar uma função complementar, secundária.

Tal funcionalidade é de elevada valia no que concerne ao poder-dever sancionador das agências, principalmente pela indispensabilidade do desenvolvimento de conceitos técnicos25, cuja possibilidade de variação, em face da evolução científica, atualmente sempre veloz, recomenda que não devam ser estatuídos mediante lei em sentido estrito.

A matéria, inerente à influência dos regulamentos nos tipos sancionatórios, vem, no estrangeiro, alcançando seu equacionamento pela Lei 39/2015, a qual disciplina o procedimento administrativo comum das Administrações Públicas no que concerne ao Estado espanhol. Preciso o seu artigo 128.226, ao interditar o regulamento para dispor sobre matérias reservadas pela Constituição de 1978 ao Parlamento, especificando que, a pretexto de desenvolver ou colaborar com a execução da lei, não poderá realizar a tipificação de delitos, faltas ou infrações administrativas.

A esse respeito, é invocável um exemplo onde se pode visualizar o alargamento indevido da competência regulamentar quanto à ANTT. Sobre a extensão da tipicidade sancionatória, o art. 78 - A da Lei 10.233/2001 delineia como infrações o maltrato aos dispositivos dos seus próprios preceitos, bem assim aos deveres estipulados no contrato de concessão, no termo de permissão e na autorização.

Nesse diapasão, o art. 14 - A da mencionada lei impõe o dever do transportador de inscrever-se no Registro Nacional dos Transportadores Rodoviários de Cargas - RNTRC. Por seu turno, a Resolução ANTT n.° 1737/2006 (art. 5°, §2°) dispôs, de forma autônoma, o dever de informação pelo transportador ao mencionado cadastro sobre as modificações da frota, para cujo descumprimento é prevista a aplicação de multa.

É de se considerar, na hipótese, que o regulamento foi além do texto legal, instituindo tipo infracional, razão pela qual se tem não somente inconstitucionalidade, mas, da mesma forma, ilegalidade, cujo reconhecimento jurisdicional dispensa a observância do procedimento do art. 97 da CRFB27.

Noutro passo, granjeia atenção a utilização de normas em branco, de nível regulamentar, para a integração dos tipos sancionatórios administrativos. Não se discute a possibilidade de assim se proceder, até porque a sua admissibilidade para a tipificação de crimes ou delitos vem sendo de aceitação preponderante28.

Essa assertiva é reforçada diante da constatação de que os tipos das normas sancionadoras administrativas não são autônomos, mas sim que remetem a outra norma na qual se tem uma ordem (mandato) ou proibição, cujo descumprimento configura a infração.

Contudo, é preciso notar que o emprego das normas sancionadoras em branco não pode levar a uma delegação tão ampla que, na prática, desvie o regulamento da sua função de complemento, conferindo-lhe o atributo de tipificar, aspecto que foi observado e mereceu a censura da doutrina pátria29.

É o que parece ter sucedido quanto à ANA, cujo art. 49, VII, da Lei 9.433/97, ao considerar como infração o descumprimento das normas estabelecidas no regulamento do mencionado diploma legal e das demais normas regulamentares sobre a matéria, inseridas as instruções e procedimentos fixados pelos órgãos ou entidades competentes.

É de se observar que a lei não se laborou no sentido de, após a descrição do núcleo do tipo, volver-se ao regulamento para que este a complemente, principalmente em face da necessidade da adição de conceitos técnicos.

Diversamente - e duma maneira escorreita - fez o art. 10, VI, da Lei 6437/77, ao prever, no que concerne à atividade sancionatória hoje da alçada da ANVISA, a figura típica de "deixar, aquele que tiver o dever legal de fazê-lo, de notificar doença ou zoonose transmissível ao homem, de acordo com o que disponham as normas legais ou regulamentares vigentes". Aqui o tipo, consistente na omissão de notificação de doença ou zoonose transmissível, foi da incumbência do legislador. Apenas e tão somente se remeteu ao regulamento a definição das enfermidades de notificação compulsória, tendo em vista se tratar de matéria técnica que exige uma constante atualização.

Finalizando este tópico, assoma problemática a cominação, ainda que por lei formal, de sanções pecuniárias mediante regra excessivamente aberta entre os seus limites mínimo e máximo. Uma situação que ostenta essa peculiaridade é a do art. 179, caput, da Lei n.° 9.472/97, ao prever: "Art. 179. A multa poderá ser imposta isoladamente ou em conjunto com outra sanção, não devendo ser superior a R$50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) para cada infração cometida".

Observe-se, ainda, que, além do §1° do referido dispositivo apenas mencionar como critérios para a fixação do valor da reprimenda a condição econômica do infrator, juntamente com o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção, tal multa é cominada, isolada ou cumulativamente, para cada uma das infrações inseridas na competência punitiva da ANATEL, definidas por força do art. 173, caput, da Lei n.° 9.472/97.

Essa técnica de cominar uma sanção pecuniária investe contra a certeza que deve ter a lei na matéria. Volta-se, a um só tempo, contra a legalidade no sentido material e, de conseguinte, a segurança jurídica. A tarefa de fixar a medida da pena - que deve se ajustar à neutralidade do legislador - passa a depender do alvedrio da autoridade competente para aplicar a sanção. Corre-se o risco, na prática, da agência vir a se transformar na senhora do tipo.

O tema já foi objeto de análise pela jurisprudência estrangeira. Dele tratou o Acórdão n.° 547/20001 do Tribunal Constitucional de Portugal30, mediante o qual foi considerado inconstitucional o artigo 670°, n.° 4, do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo artigo 1° do Decreto-Lei n.° 142 - A/91. O preceito legal cominava coima (multa) compreendida entre 500.000$ a 300.000.000$ (euros) como consequência da prática das contraordenações consideradas muito graves, as quais, objetivamente, enumera em dezoito incisos31.

Na ocasião, compreendeu-se que o preceito era portador de incompatibilidade vertical por maltrato à legalidade (artigo 29°, n.° 1 e 3)32 e à vedação de pena com duração ilimitada ou indefinida (artigo 30°, n.° 1)33, consagrados no âmbito dos direitos, liberdades e garantias34.

3. PROPORCIONALIDADE

Aspecto sempre interessante - e, até mesmo, empolgante - e que se apresenta frequente quando se trata de posturas estatais restritivas de direitos, é o inerente à proporcionalidade. A sua incidência é inegável em sede de infrações administrativas, seja no que concerne às decisões que aplicam sanções ou quanto à elaboração dos tipos punitivos. É uma nota típica do Estado de direito, da qual o nosso sistema jurídico não constitui exceção35.

A discussão em torno do tema envolve um campo vastíssimo de situações, de sorte que, para o presente enfoque, este se limitará à análise das normas legais que fixam os quantitativos mínimos e máximos das expressões monetárias das penas de multas.

Destaco, para esse fim, a legislação relativa à ANP. Atrai a atenção o art. 3°, II, III, V, VI, VII, VIII, IX, XI e XIX, da Lei n.° 9.847/99, com a redação da Lei n.° 11.097/200536, a qual dispõe sobre a fiscalização das atividades inerentes ao abastecimento de combustíveis no território nacional.

Percebe-se, pela redação constante em nota de rodapé, que, num rápido raciocínio aritmético, tem-se, nos incisos II e XI, que o valor máximo cominado corresponde a duzentas e cinquenta vezes o mínimo legal, estando este fixando em R$20.000,00. A diferença entre tais limites é verificável como sendo de: a) duzentas vezes no inciso III, sendo o mínimo de R$20.000,00; b) cinquenta vezes nos incisos V, VI e XIX, fixado o mínimo em R$20.000,00; c) dez vezes no inciso VII, partindo-se de um mínimo de R$500.000,00; d) quatrocentas vezes no inciso IX, equivalendo o mínimo a R$5.000,00; e) vinte vezes, observando-se o mínimo de R$50.000,00.

Para a fixação da sanção no caso concreto, o legislador apontou, à autoridade administrativa, os critérios relativos à gravidade da infração, à vantagem auferida, à condição econômica do infrator e aos seus antecedentes.

Abstraindo-se aqui a discussão acerca da possível inconstitucionalidade de tais tipos, duas considerações hão de serem expostas diante dos casos concretos. A primeira delas é a de que se torna preciso que a autoridade aplicadora da multa venha a motivar, objetivamente, o quantitativo aplicado. Somente assim é que o administrado poderá aferir tenha ou não havido arbitrariedade em tal proceder. Aliás, o art. 52, II, da Lei n.° 9.784/99, impõe o dever de motivar à atuação administrativa que imponha sanções. O preceito é de indiscutível aplicação às agências reguladoras, as quais se encontram vinculadas à lei e ao Direito37.

A segunda questão é a de que os patamares excessivamente elevados são, na maioria das vezes, capazes de afetar sensivelmente as empresas de pequeno porte e microempreendedores, podendo comprometer a própria existência da empresa.

Daí que, para conjurar tal inconveniente no âmbito de uma economia de mercado, é de se lançar mão, no conjunto legislativo pátrio, do art. 55, caput, da Lei Complementar n.° 123/2006, a qual, dentre seus vários aspectos, estabelece ser prioritariamente orientadora a fiscalização estatal exercida com relação a tais modalidades de sujeitos empresariais, para as quais estabelece disciplina peculiar. Por isso, impõe-se a exigência de dupla visita para a lavratura de auto de infração.

Esse tratamento jurídico - que, relembre-se, decorre de uma diretriz consagrada em nossa constituição econômica (art. 170, IX, CRFB) - é integrativo do acervo de direitos e garantias assegurados ao exercício profissional da atividade empresarial de tais agentes econômicos, consoante explicita o art. 55, §8°, do referido diploma legal.

Por isso, é indiscutível que se cuida de um dever que é imanente à atividade sancionadora estatal em sua integralidade, salvo as exceções que contempla. Isso equivale dizer que as agências reguladoras se encontram jungidas à observância do instituto na sua competência de fiscalização. A sua inobservância implica invalidade da autuação.

Isso sem contar que o art. 55, §7°, da Lei Complementar n.° 123/2006, com a redação da Lei Complementar n.° 147/2014, prevê que a Administração Federal, Estadual, Distrital e Municipal deverão observar o princípio do tratamento favorecido quando da fixação dos valores decorrentes de multas e demais sanções administrativas, o que, mais uma vez, abrange a atividade regulatória independente.

A questão que aqui se projeta é a de saber se o conteúdo do preceito legal depende da magnanimidade legislativa, ou se autoriza - ou, até mesmo, impõe - ao administrador (no caso, a agência) expedir regulamento, fixando, dentre os patamares legais, quantitativos inferiores às multas a serem aplicadas aos microempresários e às empresas de pequeno porte. À interpretação jurisprudencial caberá definir a solução.

A proporcionalidade, por representar critério impeditivo à imposição de uma sanção ou restrição de direito quando se revele inconciliável diante da correspondente situação fática, é hábil para justificar a assertiva38. Isso contribui para que se possa admitir que o art. 55, §7°, da Lei Complementar n.° 123/2006, revele-se uma imposição para que a agência reduza o montante das sanções quando o agente se enquadrar na condição de microempresário ou empresário de pequeno porte.

Com isso, é possível alvitrar a intervenção corretiva do juiz em favor do particular, por a matéria envolver a vinculação a um padrão de juridicidade traçado legislativamente, mas não para aquele fixar, ao seu talante, o montante da pena. Ao julgador, se admissível o entendimento quanto à incidência do referido preceito legal, caberá a invalidação da decisão que venha a impor a multa diante da incompletude do tipo, à falta da edição de norma estabelecendo os limites decorrentes do tratamento favorecido a que fazem jus os microempresários e as empresas de pequeno porte.

4. CONSENSUALIDADE

É indiscutível que o direito administrativo é alvo, por injunção dos reclamos que as novas relações sociais exigem, de mudanças, nas quais alguns de seus paradigmas tradicionais são atingidos.

Um dos pontos de destaque dessa evolução está na circunstância de que o cariz autoritário, isolacionista, que permeou a formulação do regime jurídico-administrativo nas primícias do Estado liberal de direito, vem perdendo terreno desde a fase social-intervencionista.

No plano do Estado regulador, ou subsidiário, a distância de posições entre Administração e administrados perde, ainda mais, a sua extensão, dando lugar à participação e à colaboração destes para a tomada de decisões tendentes à satisfação do interesse público.

Por isso, considerando-se que a consensualidade no direito administrativo guarda intimidade e correspondência com o Estado regulador, não se poderá abstrair a sua projeção no campo do poder-dever sancionatório exercitado pelas agências. A exigência de eficiência conspira a esse favor, reclamando a adoção de instrumentos eficientes para a restrição de direitos, de sorte a se evitar atuações inadequadas e desnecessárias39.

No nosso sentir, é de se reconhecer que o sistema jurídico brasileiro incorporou o paradigma da consensualidade no plano sancionatório. O arcabouço legislativo favorece essa convicção.

Se, por um lado, é possível sustentar as limitações, constantes do art. 5°, §6°, da Lei 7.347/85, tendo em vista a sua vinculação à ação civil pública, não se mais permite desconhecer uma autorização genérica a esse respeito, recentemente consignada pelo art. 26 da LINDB40. Este, por seu turno, faculta à Administração elaborar compromissos com os administrados para a eliminação de irregularidades, no conjunto das quais é possível se vislumbrar infrações administrativas, as quais resultam do descumprimento de mandatos e proibições41.

0 §1° do referido art. 26 da LINDB impõe diretrizes a serem seguidas na formalização de tais ajustes. Veja-se, in verbis, o seu teor:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

§1°O compromisso referido no caput deste artigo:

I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;

II - (VETADO);

III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

Se não bastasse tal preceito, o qual, por si só, permite a edição, pelas agências, de regulamentos nesse sentido, antes o legislador já havia esboçado essa permissão em setores específicos. É o caso da ANS, em cujo art. 4°, XXXIX, da Lei n.° 9.961/2000, com o texto da MP n.° 2.177 - 44/2001, ao enumerar os temas inseridos em sua competência, alude à celebração de termo de compromisso de ajuste de conduta.

E, desenvolvendo tal possibilidade, o art. 29, §1°, da Lei 9.656/98, com a redação da referida medida provisória, dispõe que o procedimento administrativo sancionatório, antes da aplicação da penalidade, poderá ser suspenso, a fim de permitir a formalização de ajuste de conduta, obrigando o infrator à cessação da prática e a corrigir as irregularidades, inclusive indenizando os prejuízos por estas provocados. Uma vez cumprido, extinguir-se-á o procedimento. Formalizado o compromisso, e durante a sua vigência, a prescrição para a imposição da penalidade administrativa terá o seu curso suspenso.

Desse modo, conclui-se que a consensualidade encontra amparo legal no que concerne à atividade sancionadora das agências, seja por força do art. 26 da LINDB, ou por lei específica que discipline a atuação do ente regulador.

Mas é preciso que, nesse particular, não se desconheça que o Poder Público (ou seja, a agência) não dispõe de uma liberdade de celebração ampla. Digna de nota a observação de Ricardo Martins42, ao apontar que, na seara das relações jurídico-administrativas, não há que se falar, tal qual no direito privado, de uma autonomia privada por parte da autoridade competente, no sentido de celebrar ou não o ajuste. Diferentemente, esta desempenhar uma competência, de substrato funcional.

É de se inferir, portanto, que é ao legislador quem cabe delimitar os requisitos indispensáveis à formalização do acordo, contra os quais não pode se insurgir a autoridade administrativa. Caso a regra legal não se mostre precisa, deixando um espaço de liberdade ao administrador, há uma discricionariedade que não dispensa, antes reclama, uma fundamentação suficiente direcionada à existência ou não de interesse público concreto, para a negativa à consensualidade se legitimar.

Por sua vez, a liberdade de celebração é ampla no que diz respeito ao administrado, o qual há que se manifestar se adere ou não ao ajuste.

SÍNTESE CONCLUSIVA

Ao cabo e ao resto do exposto, é possível o sumário de alguns remates. Inicialmente, é de notar que o atual modelo regulatório, a despeito das vantagens advindas com a pretendida neutralidade política, não afasta preocupações, decorrentes da ausência de controle pelo Governo e pelo Legislativo, de maneira a que não se possa esquecer que as suas competências hão que ser desenvolvidas de acordo com a lei e o Direito, o que se reflete em especial no exercício de sua competência sancionatória.

É de notar que a força expansiva com que se movem os direitos fundamentais de liberdade, bem assim a inexistência de uma relação especial de poder no vínculo entre o regulador independente e os regulados, tornam não eliminável, para fins de definições de tipos e sanções no setor regulado, a lei formal, tal qual impõe o art. 5°, XXXIX, da CRFB. A harmonia com os paradigmas do Estado democrático de Direito assim impõe.

Por sua vez, a segurança jurídica, atuando numa conjugação com a legalidade, faz com que tenhamos a imposição às agências da tipicidade (legalidade material), a ser satisfeita mediante a previsão em lei anterior (lex previa) e dotada de um conteúdo preciso (lex certa) das condutas puníveis e respectivas sanções, o que resulta na circunscrição do regulamento a uma função complementar, bem como contribui para evitar desvios na edição de normas sancionadoras em branco e, igualmente, proscreve penas de caráter ilimitado ou indefinido.

Não se pode esquecer que a proporcionalidade, no que concerne à inflição de sanções ou de medidas restritivas, é uma imposição do Estado democrático de direito, de sorte a vincular a atividade sancionadora das agências, daí resultando, dentre outras consequências, a indispensabilidade da motivação das decisões da espécie, bem como a observância do tratamento favorecido estabelecido legislativamente em favor das microempresas e empresas de pequeno porte, diretriz da ordem econômica, nos termos do art. 170, IX, da CRFB.

À derradeira, é de se enfatizar o reclamo de eficiência na atuação sancionadora da Administração respalda o emprego de instrumentos consensuais, sendo de notar a presença de regra legal, de alcance genérico, que assim dispõe, consistente no art. 26 da LINDB, o qual, indiscutivelmente, vincula a atividade regulatória das agências.


NOTAS

2 "Tal como hemos advertido ya en páginas anteriores, el ejercicio de la potestad administrativa sancionatoria es un juego en el que casi todo depende del talante personal de la autoridad que vigila, de las circunstancias políticas, del contexto y de las convicciones dogmáticas del juez competente". Alejandro Nieto García, Derecho administrativo sancionador, 5.ª ed., Madrid: Tecnos Editorial, 2011, p. 259.
3 Na atualidade, como nos mostra Juan José Montero Pascual, por regulação há que se entender como "a atividade da administração consistente no controle contínuo de um mercado mediante a imposição a seus operadores de obrigações jurídicas proporcionais, com propósitos de interesse geral, objetivamente determinados, segundo a valoração que, num âmbito de extraordinária discricionariedade, realiza a administração" (la actividad de la administración consistente en el control continuo de un mercado mediante la imposición a sus operadores de obligaciones jurídicas proporcionales a propósitos de interés general objetivamente determinadas según la valoración que, en un ámbito de extraordinaria discrecionalidad, realiza la administración. Juan José Montero pascual, "La actividad administrativa de regulación: definición y régimen jurídico", Revista digital de Derecho Administrativo, n.° 12, 2004, p. 27. Disponível em: www.revistas.externado.edu.com (Acesso em: 17-03-2021). Consoante o autor, o conceito contém como elementos os seguintes: a) atividade administrativa; b) alteridade; c) controle; d) continuidade; e) discricionariedade.
4 Interessante, nesse aspecto, a exposição de Caio Tácito, "Bases constitucionais do direito administrativo", Revista de Direito Administrativo, vol. 166, 1986, pp. 41-45, elaborada durante a fase pré-constituinte, demonstrando que as evoluções políticas, nascidas institucionalmente do direito constitucional, afetam o direito administrativo, de modo a este impor novos desafios.
5 Gaspar Ariño Ortiz, Principios de derecho público económico. Modelo de Estado, gestión pública, regulación económica, Granada: Editorial Comares, 2001, pp. 607-608.
6 Consoante Paulo Otero, Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 320. Os efeitos do surgimento das autoridades administrativas independentes são revolucionários, à medida que subtraídas aquelas a quaisquer poderes intra-administrativos por parte do Governo, bem como criando espaços a "descoberto" de um efetivo controle parlamentar. Tal - enfatiza - permite que se venha a cogitar de um corte abrupto nas ideias de legitimação democrática, substituindo-se a noção de legitimidade monárquica, preponderante durante o século XIX, por uma moderna legitimidade tecnocrática. Com isso, há o risco de emergir o que denomina de um setor da Administração "sem cabeça e politicamente irresponsável".
7 É a constatação de Pedro Paulino, "O direito das contra-ordenações e a atividade sancionatória das autoridades reguladoras independentes", Revista de Direito Administrativo, n.° 3, 2018, pp. 91-94, ao anotar que, no sistema lusitano, o ilício de mera ordenação social sempre foi visto como um parente pobre do direito penal, destinado às bagatelas jurídicas, mas que, ao longo das décadas, em face da função reguladora, assiste-se a uma elevação surpreendente do valor das multas (coimas), a atrair a necessidade da incidência de garantias procedimentais e materiais, salientando-se, dentre estas, a vedação à reforma para prejudicar.
8 São elas a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); a Agência Nacional de Águas (ANA), a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a Agência Nacional de Mineração (ANM).
9 São elas a ANP (Lei 9.487/99), a ANATEL (Lei 9.472/97, arts. 173 a 182), a ANVISA (Lei 6.437/77), a ANS (Lei 9.656/98, art. 25), a ANA (Lei 9.433/97, arts. 49 e 50), a ANTT e ANTAQ (Lei 10.233/2001, arts. 78 A a 78 K), a ANCINE (MP 2.228 - 1/2001, arts. 58 a 61) e a ANA (Lei 7.565/86, arts. 288 a 311).
10 Art. 3° Além das atribuições previstas nos incisos II, III, V, VI, VII, X, XI e XII do art. 29 e no art. 30 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, de outras incumbências expressamente previstas em lei e observado o disposto no §1°, compete à ANEEL: (Redação dada pela Lei n.° 10.848, de 2004) […] X - fixar as multas administrativas a serem impostas aos concessionários, permissionários e autorizados de instalações e serviços de energia elétrica, observado o limite, por infração, de 2 % (dois por cento) do faturamento, ou do valor estimado da energia produzida nos casos de autoprodução e produção independente, correspondente aos últimos doze meses anteriores à lavratura do auto de infração ou estimados para um período de doze meses caso o infrator não esteja em operação ou esteja operando por um período inferior a doze meses.
11 Dado ser inviável a transcrição integral dos referidos preceitos da Resolução n.° 846/2019 da ANNEL, é suficiente, para favorecer uma melhor compreensão para o leitor da sua influência no campo da definição das infrações administrativas e cominações das sanções, compreendidas no âmbito das atividades reguladas, a menção ao teor do seu art. 5°, caput e incisos I a X, e do art. 17, a saber: "Art. 5° As infrações à legislação setorial, bem como a inobservância aos deveres ou às obrigações decorrentes dos contratos de concessão e permissão, aos atos de autorização de serviços ou instalações de energia elétrica ou aos demais atos administrativos de efeitos concretos expedidos pela Agência sujeitarão o agente infrator às penalidades de: I - advertência, II - multa, III - embargo de obras, IV - interdição de instalações, V - obrigação de fazer, VI - obrigação de não fazer, VII - suspensão temporária de participação em licitações para obtenção de novas concessões, permissões ou autorizações, bem como impedimento de contratar com a ANEEL e de receber autorização para serviços e instalações de energia elétrica, VIII - revogação de autorização, IX - intervenção para adequação do serviço público de energia elétrica, ex - caducidade da concessão ou da permissão". […] Art. 17. Constitui infração, sujeita à penalidade prevista no art. 5.°, inciso VII, a inexecução total ou parcial de obrigações legais, regulamentares e contratuais de que possa resultar grave prejuízo às atividades do setor de energia elétrica ou que representem, nos termos do §3° do art. 17 do Anexo do Decreto n.° 2.335, de 1997, reiterada violação ou descumprimento de: I - padrões ou indicadores de qualidade de serviços técnicos ou comerciais, II - prazo para entrada em operação de instalações; III - determinações da ANEEL pertinentes às obrigações da fiscalizada; IV - obrigações relacionadas às transações de compra e venda de energia elétrica no âmbito da CCEE; V - obrigações de pagamento ou recolhimento, conforme o caso, da compra de energia elétrica mediante contratos regulados ou oriunda de Itaipu Binacional, ou de encargos setoriais estabelecidos na legislação, e VI - metas de universalização do serviço de energia elétrica. §1° A caracterização da reiterada violação ou descumprimento de que trata este artigo levará em conta, além da conduta individual do agente fiscalizado, a atuação das demais sociedades integrantes do grupo econômico, incluindo sócio controlador, acionistas e sociedades controladas, coligadas ou vinculadas. §2° A suspensão temporária do direito de participar em licitações para obter novas concessões, permissões ou autorizações, bem como o impedimento de contratar com a ANEEL e de receber autorização para serviços e instalações de energia elétrica pode se aplicar, considerando as circunstâncias do caso concreto, também ao grupo econômico, incluindo sócio controlador, acionistas e sociedades controladas, coligadas ou vinculadas, os quais devem ser identificados nominalmente quando da aplicação da penalidade. § 3° O prazo de suspensão ou de impedimento a que se refere o § 2° não será superior a dois anos". A íntegra do texto da Resolução n.° 846/2019 - ANEEL se encontra disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-normativa-n-846-de-11-de-junho-de-2019-164060539.
12 Doravante identificada pela sigla CRFB.
13 É de se avivar remate de Pierlugi Chiassioni, "Nota preliminar. El textualismo razonable. Una tentación resistible", en Antonin Scalia, Una cuestión de interpretación. Los tribunales federales y el Derecho. Lima: Palma Editores, 2015, p. 11. Tradução para o espanhol por Gonzalo Villa Rosas, ao expor que o caráter incomum do documento constitucional sugere a incidência de traços interpretativos essenciais. Um deles é o de que a constituição não somente contém regras detalhadas, mas sim traceja as grandes linhas, sendo, por isso, que se deva proporcionar às palavras e expressões constitucionais uma interpretação expansiva, ao invés de restritiva. Merece destaque também José Carlos Viera de Andrade quando, a propósito, realça a ideia de abertura dos direitos fundamentais, apontando, em decorrência, que não há "nenhum catálogo constitucional pretender esgotar o conjunto ou determinar o conteúdo dos direitos fundamentais, aceitando-se a existência de direitos não escritos ou de faculdades implícitas". José Carlos Viera de Andrade, Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, pp. 66.
14 A compreensão que defende uma maior aproximação do regime jurídico entre os delitos e as infrações administrativas tem se expandido consideravelmente. Prova disso é a opinião de Eduardo Cordero Quizacara, "El derecho administrativo sancionador y su relación con el derecho penal", Revista de Derecho, vol. XXV, n.° 2, 2012, pp. 131-157, elaborada a partir da interpretação dos artigos 19, incisos 1 a 7, e 76, ambos da Constituição Política da República do Chile de 1980.
15 Egon Bockmann Moreira, "Agências reguladoras independentes, poder econômico e sanções administrativas (reflexões iniciais acerca da conexão entre os temas", Revista de Direito Econômico, n.° 2, 2006, pp. 186-188.
16 Interessante destacar passagem desenvolvida pelo autor: "Não pode haver dúvidas de que o princípio e seus corolários aplicam-se às sanções administrativas (sejam elas impostas pela Administração direta ou indireta, esta independente ou não). Constatação que se intensifica em face das próprias agências reguladoras independentes. Reitere-se: se incertezas podem existir quanto ao fundamento da sua competência sancionatória, delas não se cogita quanto àquele relativo à competência sancionatória. Não é possível que ato administrativo estabeleça, por si só e ab ovo, quaisquer sanções. Isso tanto para os regulamentos como em foro de atos concretos" (ibid., p. 187). Embora não se reportando à questão sancionatória, não olvidar Juarez Freitas, "Agência Nacional dos Transportes Aquaviários - Princípio da segurança jurídica - Exigência da menor precariedade possível das relações de Administração - Terminais portuários de uso privativo: contrato de adesão - Princípio da irretroatividade dos atos normativos - Limites ao poder de modificação unilateral do Estado - Inviabilidade dos atos administrativos autônomos na CF/88 - Princípio da legalidade", Interesse Público, n.° 20, 2003, pp. 100-103, ao enfatizar que as agências reguladoras não podem criar um direito autônomo, sendo inviável que os seus atos normativos regulamentares criem ou suprimam direitos.
17 A tentativa de delinear tal conceito, bem assim o seu regime jurídico, está em Edilson Pereira Nobre Júnior, Direito Administrativo Contemporâneo - Temas Fundamentais, Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 33-46. Destaque-se, para uma melhor ideia do instituto ao leitor, o sumário de características que procurou reunir Alfredo Gallego Anabitarte, "Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la legalidad de la Administración", Revista de Administración Pública, n.° 34, 1961, p. 25, enumerando-as: a) existência de uma acentuada situação de dependência; b) estado geral de liberdade limitada; c) existência de uma relação pessoal; d) impossibilidade do estabelecimento de antemão da extensão e do conteúdo das prestações, assim como a intensidade das necessárias intervenções coativas na esfera dos afetados; e) o fato do indivíduo ter de obedecer a ordens, as quais não emanam diretamente da lei; f) o fato de que referida situação se justifica em razão de um determinado fim administrativo; g) alusão a uma elementar de voluntariedade em dita situação de submissão; h) admissão, expressa ou tácita, de que a justificativa de mencionada relação se encontra na necessidade de uma eficiência e produtividade administrativa.
18 Ver Edilson Pereira Nobre Júnior, ibid., p. 40.
19 Não se desconhece que, na majoritária jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, há entendimento de cujos termos é possível se conduzir à afirmação de que a agência, desde que autorizada por lei para regular determinada atividade, é competente para estabelecer infrações e suas respectivas sanções, afastando-se, às expressas, a observância da reserva legal. Dentre outros julgados, conferir: o RESP 1807533 - RN (Segunda Turma, unânime, rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 04-09-2020), o AgInt no RESP 825776 (Segunda Turma, unânime, rel. Min. Sérgio Kukina, DJe de 31-082020) e o RESP 1371426 (Segunda Turma, unânime, rel. Min. Humberto Martins, DJe de 24-11-2015). A despeito da matéria concernente à reserva legislativa ser de índole constitucional, é de se observar que tal ponto de vista somente se justifica como tendo partido de uma equivocada percepção do suposto julgamento líder, consistente no RESP 1386994 (Segunda Turma, unânime, rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 13-11-2013). O voto-condutor deste, para afastar a alegação de ofensa ao princípio da legalidade, é explícito, na sua conclusão, em acentuar que a Lei n.° 10.233/2001 foi precisa em estabelecer as condutas puníveis e as penalidades cabíveis. Por isso, não poderia respaldar que, numa linha evolutiva, prevalecesse a tese da admissibilidade da delegação legal ao regulamento para o fim de prever infrações administrativas.
20 À guisa de exemplo, é o que acontece com a ANP (art. 15, V, da Lei 9.478/97) e a ANVISA (art. 22, III, Lei 9782/99).
21 Conferir María Jesús Gallardo Castillo, Los principios de la potestad sancionadora. Teoría y práctica, Madrid: Iustel, 2008, p. 25
22 Ibid., p. 25.
23 Fábio Medina Osório, Direito administrativo sancionador, 2.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 262.
24 Ibid., pp. 267-268.
25 O fenômeno da proliferação de normas de índole científica e técnica nos quadrantes do direito público atual é abordado por José Carlos Vieira de Andrade, "O Direito e as palavras", Archivum et jus, Arquivo da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 42-43.
26 Duma forma exata, dispõe a regra acima mencionada: "Artigo 128. Competência regulamentar. […] 2. Os regulamentos e disposições administrativas não poderão vulnerar a Constituição ou as leis nem regular aquelas matérias que a Constituição ou os Estatutos de Autonomia reconhecem como sendo da competência das Cortes Gerais ou das Assembleias Legislativas das Comunidades Autônomas. Sem prejuízo de sua função de desenvolvimento ou colaboração com respeito à lei, não poderão tipificar delitos, faltas ou infrações administrativas, estabelecer penas ou sanções, assim como tributos, exações parafiscais ou outros encargos ou prestações pessoais ou patrimoniais de caráter público. Artículo 128. Potestad reglamentaria. […] 2. Los reglamentos y disposiciones administrativas no podrán vulnerar la Constitución o las leyes, ni regular aquellas materias que la Constitución o los Estatutos de Autonomía reconocen de la competencia de las Cortes Generales o de las Asambleas Legislativas de las Comunidades Autónomas. Sin perjuicio de su función de desarrollo o colaboración con respecto a la ley, no podrán tipificar delitos, faltas o infracciones administrativas, establecer penas o sanciones, así como tributos, exacciones parafiscales u otras cargas o prestaciones personales o patrimoniales de carácter público. Disponível em: www.boe.es. Acesso em: 23-03-2021. Essa diretriz normativa tem sido acolhida entre nós. Basta ver a Lei n.° 10.177/98, a qual, em disciplinando o procedimento administrativo no âmbito da Administração Pública paulista, prevê: "Artigo 6° - Somente a lei poderá: I - criar condicionamentos aos direitos dos particulares ou impor-lhes deveres de qualquer espécie; II - prever infrações ou prescrever sanções". Disponível em: www.al.sp.gov.br. Acesso em: 23-03-2021.
27 TRF - 5ª Região, Quarta Turma, unânime, PJE 0811647 - 07, rel. Des. Edilson Nobre, publicado em 11-09-2019. Especialmente quanto à visão do Superior Tribunal de Justiça, remete-se ao exposto na nota de rodapé 16.
28 STF, Primeira Turma, RHC 80090 - SP, unânime, rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 1606-2000; STJ, Quinta Turma, RHC 9834 - SP, unânime, rel. Min. Félix Fischer, DJU de 04-06-2001.
29 É o caso de Fábio Medina Osório, Direito administrativo sancionador, 2.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 179, ao frisar que as normas em branco podem dispor arbitrariamente de suas próprias competências, de sorte a implicar numa delegação à autoridade administrativa da função de tipificar. À guisa de exemplo, atrai à ribalta o art. 161 da Lei n.° 9.503/97, ao permitir que o CONTRAN, por resolução, tipifique infração à ordenação do trânsito.
30 Terceira Secção, maioria, rel. Maria dos Prazeres Beleza, Diário da República - II Série, de 15-07-202. A íntegra do julgado se acha disponível em: www.dre.pt. Acesso em: 01-04-2021.
31 É interessante notar que, ao menos, o legislador português, para a incidência de tal pena pecuniária, descreveu, pormenorizadamente, as infrações capazes de justificá-la, ao contrário da Lei n.° 9.472/97, a qual faculta a incidência da multa, isolada ou não, a qualquer das condutas às quais se refere o seu art. 173, caput.
32 Artigo 29°. Aplicação da lei criminal 1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. […] 3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior. Disponível em: www.parlamento.pt. Acesso em: 01-04-3021.
33 Artigo 30.° Limites das penas e das medidas de segurança 1. Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida. Disponível em: www.parlamento.pt. Acesso em: 01-04-2021.
34 Calha adequada a transcrição de parte relevante da motivação do voto da relatora: "No que toca à afirmação segundo a qual 'a distância entre o limite mínimo e o limite máximo da coima' não seria 'de molde a que esta deixe de cumprir a sua função de garantia contra o exercício abusivo (persecutório e arbitrário) ou incontrolável do ius puniendi do Estado', já que o legislador teria fixado sem margem para dúvidas os limites "'dento dos quais se há de mover aquele que tiver de aplicar a coima', cabe distinguir dois planos distintos na ponderação do princípio da legalidade da sanção: um deles é o que se traduz na exigência de fixação da espécie de sanção aplicável e dos respectivos limites, outro, que com este não deve ser confundido, é o que respeita à amplitude de tais limites. Na verdade, não pode o legislador estabelecer limites tão distantes ou afastados que, demitindo-se da sua missão específica, remeta no fundo para o aplicador do direito a tarefa de escolher a sanção aplicável. O que acaba de referir-se relaciona-se ainda com o argumento usado no citado acórdão de que 'uma certa extensão da moldura sancionatória é de algum modo - pode mesmo dizer-se - o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana e se extrai dos artigos 1.° e 25.°, n.° 1, da Constituição'. Esta afirmação é de subscrever; mas aponta no sentido oposto àquele em que é utilizada. Se um entendimento absoluto do princípio da legalidade da sanção levaria ao sistema das penas fixas, com postergação do princípio da culpa, também um entendimento absoluto do princípio da culpa levaria, com afastamento do princípio da legalidade da sanção, a deixar plenamente nas mãos do juiz (ou da autoridade administrativa) a questão da escolha e da medida da sanção. Ora, afirmar-se que 'uma certa extensão da moldura sancionatória é […] o tributo que o princípio da legalidade das sanções tem de pagar ao princípio da culpa' é reconhecer necessariamente duas coisas: que o princípio da legalidade das sanções deve ser tido em conta na apreciação da constitucionalidade da 'extensão da moldura sancionatória'; e que, se tal extensão exceder manifestamente o que for imposto pelo princípio da culpa ('uma certa extensão' não equivale a uma enorme extensão), deve ser directamente confrontada com o princípio da legalidade da sanção. 10 - Resta, ainda, acrescentar que não está evidentemente em causa a muito ampla margem de manobra do legislador na fixação dos modelos sancionatórios que decide adoptar, bem como na escolha e determinação dos limites das sanções aplicáveis. Por outras palavras, haverá, por certo, diversos modos de conjugar, sem violação da Constituição, os princípios da culpa e da legalidade da sanção. O que se questiona é, antes, a possibilidade de, pela aceitação de limites extraordinariamente amplos, se pôr em causa a previsibilidade da sanção, pela transferência para o aplicador do direito de uma tarefa da qual o legislador total ou parcialmente se demitiu. O que fica dito não é ainda afectado pela aplicabilidade dos critérios gerais de determinação da medida da coima, previstos no artigo 18.° do Decreto-Lei n.° 433/82, ou dos critérios especiais previstos no CMVM. É que a aplicação de tais critérios a um quadro sancionatório de limites tão afastados como aquele que é objecto do presente recurso não reduz de modo significativo a insegurança dele resultante. Não procede, ainda, a chamada à colação da "natureza dos bens jurídicos que o legislador quer tutelar", ou da "importância dos valores sociais envolvidos" (v. o acórdão citado), que poderá, porventura, justificar a adopção de sanções de gravidade não despicienda, mas nada depõe no sentido de uma excessiva amplitude sancionatória. O mesmo se diga relativamente às características específicas do mercado de valores mobiliários, ou dos ilícitos que com ele se conexionam. Os montantes muito elevados em causa, os benefícios colhidos pelos infractores, os prejuízos sofridos por outrem ou pelo próprio mercado e a necessária possibilidade de actuar com rigor, prontidão e eficiência na punição das infracções cometidas (cf. o ponto 24 do preâmbulo do CMVM) não levam a aceitar necessariamente uma desproporção acentuada entre os limites mínimo e máximo das sanções. Como refere o conselheiro Luís Nunes de Almeida, na sua declaração de voto, "cabe ao legislador, para assegurar que o princípio da culpa não é postergado, mas que o princípio da legalidade também não é inteiramente sacrificado, determinar, em abstracto, os critérios definidores dos diversos patamares de culpa e fixar, para cada patamar, a sanção aplicável, no seu mínimo e no seu máximo". Esta passagem se situa nos itens 9 e 10 do voto da relatora. É de salientar que, anteriormente, esse modo de pensar foi ressaltado em declaração de voto vencido do Conselheiro Luís Nunes de Almeida no Acórdão n.° 574/95.
35 A noção de proporcionalidade remonta à antiguidade, mas renasceu tendente a uma sistematização com o desenvolvimento do direito administrativo no século XIX, tendo alcançado um papel fundamental com a atividade controladora exercitada pelo Conselho de Estado da França mediante o recours pour excès de pouvoir. Para Daniel Sarmiento Ramírez-Escudero, El principio de proporcionalida en el derecho administrativo. Un análisis desde el derecho español, Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 95, as peculiaridades inerentes ao sistema jurídico-penal, juntamente com a mudança metodológica na imposição da pena, legaram à proporcionalidade uma evolução peculiar e quase autônoma no que concerne ao controle da discricionariedade administrativa.

Transformou - diz o autor - o papel do juiz, permitindo a legislação (no caso, o artigo 131 da Lei 30/1992, atualmente, o artigo 28 da Lei 40/2015) que este proceda a um controle positivo, capaz de substituir a decisão adotada em sede administrativa. Por sua vez, Fábio Medina, Direito administrativo sancionador, 2.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 225, sustenta que o postulado da proporcionalidade se acha indissoluvelmente ligado à vertente formal e material do Estado de direito e que, no constitucionalismo pátrio vigente, encontra o seu reconhecimento na cidadania e na dignidade da pessoa humana (art. 1°, II e III, CRFB). Não descartar a positivação da proporcionalidade em nível legal, mais precisamente no art. 2°, parágrafo único, VI, da Lei n.° 9.784/99. Especialmente quanto às agências reguladoras federais há o art. 5° da Lei n.° 13.848/2019, dispondo que estas devem observar, em sua atividade, "a devida adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público".
36 Eis o texto do preceito legal: "Art. 3° A pena de multa será aplicada na ocorrência das infrações e nos limites seguintes: […] II - importar, exportar ou comercializar petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis em quantidade ou especificação diversa da autorizada, bem como dar ao produto destinação não permitida ou diversa da autorizada, na forma prevista na legislação aplicável: Multa - de R$20.000,00 (vinte mil reais) a R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais); III - inobservar preços fixados na legislação aplicável para a venda de petróleo, seus derivados básicos e produtos, gás natural e condensado, e álcool etílico combustível: Multa - de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$1.000.000,00 (um milhão de reais); […] V - prestar declarações ou informações inverídicas, falsificar, adulterar, inutilizar, simular ou alterar registros e escrituração de livros e outros documentos exigidos na legislação aplicável: Multa - de R$20.000,00 (vinte mil reais) a R$1.000.000,00 (um milhão de reais); VI - não apresentar, na forma e no prazo estabelecidos na legislação aplicável ou, na sua ausência, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, os documentos comprobatórios de produção, importação, exportação, refino, beneficiamento, tratamento, processamento, transporte, transferência, armazenagem, estocagem, distribuição, revenda, destinação e comercialização de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis: Multa - de R$20.000,00 (vinte mil reais) a R$1.000.000,00 (um milhão de reais); VII - prestar declarações ou informações inverídicas, falsificar, adulterar, inutilizar, simular ou alterar registros e escrituração de livros e outros documentos exigidos na legislação aplicável, para o fim de receber indevidamente valores a título de benefício fiscal ou tributário, subsídio, ressarcimento de frete, despesas de transferência, estocagem e comercialização: Multa - de R$500.000,00 (quinhentos mil reais) a R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais); VIII - deixar de atender às normas de segurança previstas para o comércio ou estocagem de combustíveis, colocando em perigo direto e iminente a vida, a integridade física ou a saúde, o patrimônio público ou privado, a ordem pública ou o regular abastecimento nacional de combustíveis: Multa - de R$20.000,00 (vinte mil reais) a R$1.000.000,00 (um milhão de reais); IX - construir ou operar instalações e equipamentos necessários ao exercício das atividades abrangidas por esta Lei em desacordo com a legislação aplicável: Multa - de R$5.000,00 (cinco mil reais) a R$2.000.000,00 (dois milhões de reais); X - sonegar produtos: Multa - de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) a R$1.000.000,00 (um milhão de reais); XI - importar, exportar e comercializar petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis fora de especificações técnicas, com vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor: Multa - de R$20.000,00 (vinte mil reais) a R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais); [… ] XIX - não enviar, na forma e no prazo estabelecidos na legislação aplicável, as informações mensais sobre suas atividades: Multa - de R$20.000,00 (vinte mil reais) a R$1.000.000,00 (um milhão de reais)". Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 17-03-2021.
37 É de se destacar Elisenda Malaret García, "Autoridades independientes y justicia administrativa", Revista de Direito Público da Economia, n.° 4, 2003, pp. 91 e 97-98, quando, a despeito de uma exposição lastreada no sistema jurídico espanhol e comunitário, mas compatível com o modelo brasileiro, vinculado à exigência do devido processo legal para as restrições de direito na seara administrativa, defende a importância da motivação para a legitimação das decisões das autoridades administrativas independentes, de modo a conformá-las com os princípios gerais do procedimento administrativo da possibilidade de contradita e da transparência. Sintetiza a autora que a exigência de fundamentação possui uma dupla funcionalidade, a saber: a) a de que o próprio processo decisório da AAI, ao explicitar as suas razões, melhorará sua própria racionalidade, excluindo argumentos não suscetíveis de serem comunicados e de gerar aceitação; b) permitir o controle racional pelo juiz e pela opinião pública.
38 Por isso, é de se visualizar a probabilidade densa de que uma resposta afirmativa se imponha. Relembro aqui a referência - que se pode dizer genérica, ou, até mesmo, descontextualizada, mas que tem o mérito de dizer respeito a um juízo de proporcionalidade pela agência quando do estabelecimento do montante da sanção pecuniária - de Jaime Orlando Santofimio Gamboa, Compendio de derecho administrativo, Bogotá: Universidad Externado da Colombia, 2017, p. 477, para quem se impõe uma ponderação ou balanceamento pela autoridade administrativa mediante o qual se examinem fatores objetivos para a imposição das sanções que devam ser dosificados ou, ao menos, contar com alguma dosimetria. Isso é lógico, partindo-se do que já expôs o legislador.
39 De anotar que Beatriz Belando Garín, "Las posibilidades de la mediación administrativa: concepto y ámbitos", in Isabel Celeste M. Fonseca (org.). Mediação administrativa: contributos sobre as (im)possibilidades. Coimbra: Almedina, 2019, pp. 46-47, vislumbra, com lastro no direito à boa administração, consagrado pelo Artigo 41° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (versão em português disponível em: www.direitoshumanos.usp.br), um impulso à receptividade da mediação no seio dos conflitos entre a Administração Pública e os cidadãos, sendo legal e legítimo que aquela busque soluções consensuais alternativas em procedimentos sancionatórios. Na doutrina brasileira, semelhante é o entendimento de Juarez Freitas, O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais, 4.ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 37, ao frisar que o direito fundamental à boa administração pública envolve uma função administrativa eficiente, o que pressupõe a redução dos conflitos intertemporais.
40 Não desconhecer que, embora sem uma norma geral dotada de maior explicitação, um instrumento consensual de incidência no terreno sancionatório, qual seja a celebração de termo de compromisso de cessação, já constava da Lei n.° 9.873/99, cujo art. 3°, I, a ele se refere como causa suspensiva da prescrição administrativa. No que concerne à Comissão de Valores Mobiliários - CVM e ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, o compromisso de cessação encontra previsão na Lei n.° 6.385/76 (art. 11, §5°) e na Lei n.° 12.529/2011 (art. 85), respectivamente.
41 A adequação do art. 26 da LINDB à competência sancionadora é alvo de realce por parte de Sérgio Guerra e Juliana Bonacorsi De Palma, "Art. 26 da LINDB. Novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública", Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: direito público na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (Lei n.° 13.655/2018), novembro de 2018, pp. 140-143 e 150. Da exposição dos autores, é de se destacar a passagem seguinte: "Qualquer prerrogativa pública pode ser objeto de pactuação, como a prerrogativa sancionatória, fiscalizatória, adjudicatória etc. Não há objeto interditado no compromisso. A LINDB sepultou qualquer ordem de discussão sobre a tal "indisponibilidade do interesse público" e o decorrente entendimento esposado por parte (minoritária) da doutrina no sentido de que os assuntos públicos são indisponíveis, negociáveis e transacionáveis. Isso porque o âmbito de aplicação do compromisso da LINDB é delimitado pela funcionalidade do instrumento, qual seja, "para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito. A LINDB condiciona a celebração do compromisso ao seu endereçamento a uma das situações jurídicas concretas na aplicação do Direito Público que lista: (i) irregularidade; (ii) incerteza jurídica ou (iii) situação contenciosa". Assim, a LINDB poderá envolver qualquer assunto público, desde que se destine a endereçar um dos problemas da legitimação do pacto" (idem, p. 150). Numa mesma diretriz, é de se conferir Ravi Peixoto,, "O art. 26 da LINDB como cláusula geral para a realização da autocomposição pela Administração Pública: uma análise dos limites e possibilidades", Civil Procedure Review, vol. 12, n.° 3, 2021, pp. 75 e 89.
42 Ricardo Martins, "Administração consensual à luz das alterações da LINDB", Revista de Direito Administrativo, Infraestrutura, Regulação e Compliance, n.° 15, 2020, p. 289.


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