DOI: http://dx.doi.org/10.18601/01229893.n34.04
As ações populares previstas pelo código civil e a evolução do direito administrativo colombiano*
The Popular Actions Provided for in the Civil Code and the Evolution of Colombian Administrative Law
Thales Morais Da Costa**
* Todas as citações de legislação, jurisprudência e doutrina contidas no presente estudo conservam a grafia original e não foram atualizadas pelas novas regras ortográficas.
Para citar el artículo: TH. M. DA COSTA, As ações populares previstas pelo código civil e a evolução do direito administrativo colombiano. Revista Derecho del Estado n.º 34, Universidad Externado de Colombia, enero junio de 2015, pp. 61-76. DOI: 10.18601/01229893.n34.04
** Doutorando em regime de dupla titulação (cotutela) na Université Paris I Panthéon-Sorbonne e na Universidade de São Paulo. O autor gostaria de registrar seus agradecimentos ao Departamento de Derecho Constitucional e ao Departamento de Derecho Administrativo da Universidad Externado de Colombia pela honra de ter sido “investigador invitado” de fevereiro a agosto de 2011. Endereço eletrônico para contato: costathales@yahoo.fr
Recibido el 9 de diciembre de 2014, aprobado el 20 de febrero de 2015.
Sumario
1. A exclusividade da administração pública na gestão dos bens de uso público. 1.1. A ausência de exclusividade da administração pública no momento de elaboração do código civil colombiano. 1.1.1. A administração não dispunhade uma habilitação exclusiva para velar pela conservação dos bens de uso público. 1.1.2. A administração pública não dispunha de um dever exclusivo dereparar os bens de uso público danificados.1.2. A afirmação da exclusividadeda administração pública e sua incidência no campo das ações populares. 1.3. O entendimento da Corte Suprema de Justicia sobre as ações popularessob o prisma da exclusividade da administração pública. 2. A evolução docontencioso administrativo. Conclusão.
Resumen
Mientras la doctrina colombiana entiende que las acciones populares del Código Civil fueron “inexplicablemente relegadas al olvido”, la comparación de la evolución del derecho administrativo colombiano con el derecho brasileño lleva a otra conclusión. Las acciones populares existentes a mediados del siglo XIX hacían parte de un complejo sistema que tenía dos ideas centrales: la administración pública no era la única habilitada para velar por los bienes de uso público y no era la única que debía contribuir a su reparación (existencia de lo que el derecho vigente llamaba “servicio personal subsidiario”). A partir de finales del siglo XIX, la afirmación de la exclusividad de la administración en la gestión de los bienes de uso público y la creación del contencioso administrativo llevaron a la jurisprudencia a restringir cada vez más el ámbito de las acciones populares del Código Civil.
Palabras clave: Acciones populares, código civil, administración pública, exclusividad, contencioso administrativo.
Abstract
While Colombian jurisprudence suggest that the popular actions provided for in the civil code have been ‘inexplicably forgotten’, the evolution of Colombian administrative law, when compared to Brazilian law, leads to another conclusion. The popular actions existing in the middle of the 19th century were a part of a complex system based on two main ideas: public administration had no exclusive jurisdiction on things for public use and it had no exclusive duty to preserve these things (existence of what Colombian Law used to call the ‘subsidiary personal service’). From the end of the 19thcentury, the consolidation of public administration’s exclusive jurisdiction on things for public use and the creation of administrative judges lead Colombian courts to restrict gradually the field of the popular actions enunciated in the civil code.
Keywords: Popular actions, civil code, Public Administration, exclusivity, Administrative Judges.
Ao deparar-se com o fato de que, durante o século XX, são raros os casos práticos de ações populares fundadas no código civil de 1873, parte da doutrina colombiana tem tendência a considerar que elas teriam sido “inexplicablemente relegadas al olvido.”1 O objetivo deste estudo é apresentar uma interpretação diferente e, para tanto, partiremos de uma breve comparação com o código civil brasileiro.
Contrariamente ao código colombiano, que prevê as ações populares nosartigos 1005, 2355 e 2359, o primeiro código civil brasileiro, aprovado em1916, nada dizia sobre esta modalidade de acesso à justiça. Durante a elaboração deste código, houve um debate acerca da inclusão ou não de um artigo prevendo as ações populares. Um dos membros da comissão redatora doprojeto, ANDRADE FIGUEIREDO, manifestou-se favoravelmente a esta inclusão, mas não obteve a adesão dos demais integrantes desta comissão. Prevaleceu aopinião de CLÓVIS BEVILACQUA, segundo a qual « se compreende [a existência de ações populares] em um estado do direito em que a organização políticanão está suficientemente desenvolvida, de modo que seja indispensável queos particulares estejam velando pelos interesses públicos »2. Este já não seria,porém, o caso do Brasil, na opinião dos integrantes desta comissão. MANUEL AURELIANO DE GUSMÃO sintetizou com clareza o pensamento dominante na passagem do século XIX ao XX: « No estado actual, porém, não só do nossoDireito, como do Direito da quasi totalidade das nações civilizadas, nãomais ha logar ao exercicio das acções populares; e a razão é que (...) na organização juridica hodierna, por um lado, os actos que, no Direito Romano, autorizavam as acções populares, ou passaram a constituir crimesdefinidos e punidos pelas leis penaes, ou a ser objecto de leis de policia, deleis provinciaes, communaes ou municipaes, e por outro lado a funcção judiciaria de velar pela guarda e conservação dos bens publicos e de defender,em juizo, os interesses sociaes e collectivos é exercida pelos representantesdo ministerio publico, para tal fim creado e instituido no organismo politicoda generalidade dos povos cultos »3
É procedente a observação deste autor no sentido de que os atos que anteriormente autorizavam as ações populares passaram a ser previstos comocrimes ou a ser objeto de leis de polícia. A legislação brasileira em vigorao final do século XIX fornece exemplos claros a respeito dessa evolução,tanto no âmbito do direito penal quanto na esfera do direito administrativo.
O artigo 152 do código penal brasileiro de 1890, por exemplo, previa umapena de prisão para o fato de « [d]estruir, ou damnificar, qualquer parte deestrada ou via de communicação de uso publico, obstando ou interrompendo o transito por ella...» - fato que, no direito romano, podia ser atacadopor meio de ação popular. Quanto ao direito administrativo, convém citar oartigo 45 da lei nº 16 de 13 de novembro de 1891 do Estado de São Paulo,segundo o qual “[é] da exclusiva competencia das camaras a administraçãoe conservação dos bens municipaes, entre os quaes se comprehendem tantoos proprios municipaes como os de uso commum dos moradores.” A afirmação de uma competência “exclusiva” da administração pública em matériade gestão dos bens de uso público é especialmente reveladora da superaçãodas ações populares, tal como será demonstrado adiante.
O importante neste momento é destacar que os redatores do código civil de1916 preferiram não criar regras nas áreas já disciplinadas pelo direito penale pelo direito administrativo. Esta escolha da comissão redatora do có0digocivil é a razão pela qual o código brasileiro é significativamente mais curtodo que o de outros países, como a Colômbia4.
A evolução descrita acima - segundo a qual os atos que outrora davamazo às ações populares estavam agora disciplinados pelo direito penal e pelodireito administrativo - permite entender a razão pela qual o código brasileiro de 1916 adotou uma concepção do acesso à justiça focada no interesseindividual. Segundo o art. 76 desse código, “[p]ara propor, ou contestar umaação, é necessário ter legitimo interesse econômico, ou moral. Parágrafoúnico. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente aoautor, ou á sua família.”
Este é, em rápidas palavras, o pensamento que fez com que o código civilde 1916 não previsse as ações populares.
Voltando agora os olhos para o direito colombiano, o caso brasileiro trazuma perspectiva interessante de análise: o direito penal e o direito administrativo teriam exercido alguma influência sobre a prática das ações popularesprevistas pelo código civil de 1873? De que maneira essas ações teriam sidoacolhidas pela jurisprudência colombiana no final do século XIX e na primeirametade do século XX?
São estas as questões que serão examinadas no âmbito deste estudo.
A questão relativa ao direito penal pode ser tratada rapidamente. A legislação penal permaneceu, no tema dos bens de uso público, bastante modesta. O código de 1890 (lei nº 19 de 18 de outubro de 1890) não continha nenhumartigo sobre esses bens, contrariamente ao código penal brasileiro adotadono mesmo ano. A única disposição do código colombiano de 1890 suscetível de ser relacionada com os bens de uso público é a que criminalizava o danocausado às vias férreas (art. 869). O código penal de 1936 (lei nº 95 de 24 deabril de 1936) retomou esta regra em termos muito parecidos e acrescentou o dano às vias para automóveis (art. 256). É somente com o código penal de1980 que a matéria penal foi ampliada a ponto de criminalizar o dano causadoaos bens de uso público de modo geral5. O âmbito penal permaneceu, comose vê, bastante limitado e não chegou a representar, durante muito tempo,qualquer obstáculo à opção do legislador civil de 1873 de prever ações populares em matéria de bens de uso público.
A mesma timidez não se verificou, porém, no caso do direito administrativo, que teve um desenvolvimento muito importante em dois camposfundamentais: a exclusividade da administração pública na gestão dos bensde uso público (1) e a repartição de competências entre juiz ordinário e juizadministrativo (2).
1. A exclusividade da administração pública na gestão dos bens de uso público
1.1. A ausência de exclusividade da administração pública no momentode elaboração do código civil colombiano
A ausência de exclusividade da administração pública na gestão dos bens deuso público revela-se em dois âmbitos distintos: o fato de que ela não era aúnica habilitada a velar pela conservação destes bens (1.1.1) e o fato de que elanão era a única a dever reparar os bens que tivessem sido danificados (1.1.2).
1.1.1. A administração não dispunha de uma habilitação exclusiva para velarpela conservação dos bens de uso público
O direito colombiano não demorou a atribuir à polícia administrativa poderesde gestão dos bens de uso público. A lei de 18 de maio de 1841, por exemplo,já previa em seu artigo 79 que “Cuando haya dentro de las poblaciones algúnedificio vencido ó que amenace ruina, i que por su causa pueda peligrar laseguridad de las personas, los jefes de policía deben requerir à su dueñopara que lo descargue ó derribe; i no haciéndolo dentro de tercero dia, lomandarán hacer à costa del dueño. (…)”6
Observe-se que, ao conceder essa atribuição à polícia administrativa, alei de 1841 não afirmava que o fazia a título exclusivo. Deixava-se, assim,aberta a possibilidade de que outras leis previssem outros meios de obter omesmo resultado.
Era o que ocorria com a via judicial. Segundo as Siete Partidas, textoque permanecia em vigor nas primeiras décadas posteriores à independênciacolombiana7, “[a]brense á las veces las labores nuevas, porque se fiendenlos cimientos, ó porque fueron fechos falsamente ó por flaqueza de la labor;et otrosi los edeficios antiguos fallescen et quiérense derribar por vejez: etlos vecinos que están acerca dellos témense de rescebir ende daño. Sobretal razón como esta decimos quel judgador del logar puede et debe mandará los señores de aquellos edeficios que los enderescen ó que los derriben”8(lei X do título XXXII da Partida III).
Quando ANDRÉS BELLO elaborou seu projeto de código civil, incluiu trêsartigos em que se vê claramente a influência das Siete Partidas9: “La municipalidad i cualquiera persona del pueblo podrá intentar la querella de que se trata en los tres artículos precedentes, siempre que del mal estado deledificio pueda seguirse daño, no solo a los vecinos, sino a los transeúntes. La misma querella, i con los mismos efectos, podrá ser intentada por cualquier persona particular, siempre que del mal estado del tal edificio pudiereresultar daño a las cosas de uso público, como calles, caminos, etc.”10; “Si hubiere alguna cosa que, de la parte superior de un edificio o de otro parajeelevado, amenace caída i daño, podrá ser obligado a removerla el dueñodel edificio, o su inquilino, o la persona a quien perteneciere la cosa o que se sirviere de ella; i cualquiera del pueblo tendrá derecho para pedir laremocion”11; “Por regla general, se concede accion popular en todos los casos de daño contingente que por imprudencia o negligencia de alguienamenace a personas indeterminadas (…)”12.
Esses textos - a lei colombiana de 1841, de um lado, e as Siete Partidas e o projeto de BELLO, de outro - apresentam semelhanças em dois pontos defundamental importância. O primeiro é que todos eles revelam uma preocupação com a segurança dos que transitam à proximidade de um edifício emruínas e buscam evitar que um dano seja causado a essas pessoas: a lei de1841 menciona o edifício que “pueda peligrar la seguridad de las personas”, enquanto que a Partida III fala dos “vecinos” que “témense de rescebir ende daño” e BELLO refere-se ao risco de que “pueda seguirse daño” ou “pudiere resultar daño”, bem como à coisa que “amenace caída i daño” e ao “daño contingente”.
O segundo ponto em que esses textos se assemelham é que todos preveema possibilidade de impor o reparo ou a derrubada dos edifícios em ruínas,mas nenhum deles atribui essa competência a uma só autoridade: o textocolombiano diz que a edição desta ordem é de competência da autoridadeadministrativa; as Siete Partidas e o projeto de bello dizem que a mesma ordem cabe ao juiz, uma vez acionado por um “vecino” ou “cualquiera del pueblo”.
Percebe-se, então, a primeira faceta da ausência de exclusividade daadministração pública na gestão dos bens de uso público: era possível que amesma medida fosse adotada por mais de uma autoridade.
1.1.2. A administração pública não dispunha de um dever exclusivo de repararos bens de uso público danificados
A segunda faceta da ausência de exclusividade da administração pública nagestão dos bens de uso público está ligada ao reparo dos bens de uso públicodanificados. A lei de 19 de maio de 1834 previa que, quando os recursospúblicos não fossem suficientes “para los gastos necesarios i frecuentesque exija la reparacion de caminos, calzadas, puentes, tambos i posadas,la limpieza de los ríos i caños navegables, i la conservacion de otras obrasnecesarias para la facilidad de las comunicaciones; todos los habitantes de la respectiva ciudad, villa ó distrito parroquial son obligados á concurrir áestos trabajos con su servicio personal” (art. 206).
O “servicio personal subsidiario para la reparacion de los caminos i obraspúblicas” (título XI da lei de 1834) visava a que os bens de uso público “se conserven siempre en el mejor pie posible” e a que “se hagan los reparos convenientes inmediatamente que tenga noticia de cualquier daño” (art. 216da mesma lei).
Segundo o art. 211 do mesmo texto, “[a]nualmente forman los alcaldes unalista general de todos los habitantes de la ciudad, villa ó distrito parroquialque estan obligados al servicio personal” e, nos termos do art. 212, “[o]chodias antes de emprenderse cualquiera reparo ú obra de las prevenidas en el artículo 207, los alcaldes fijan la lista particular de los que en aquella vezdeben prestar el servicio personal, haciéndolos tambien citar personalmente”.
Uma regra semelhante já existia nas Siete Partidas. No texto da lei XX do título XXXII da Partida III, já aparece muito claramente a relação entreos danos causados aos bens de uso público e a possibilidade de exigir doscidadãos que supram eventual falta de recursos públicos para reparar o bemafetado. Segundo este texto, “Apostura et nobleza del regno es mantener los castiellos, et los muros de las villas, et las otras fortalezas, et las calzadas, etlas puentes et los caños de las villas, de manera que non se derriben nin se desfaga.” O mesmo texto prossegue dizendo que “la guarda et la femencia destas labores pertenesce al rey”, o qual “debe hi poner homes señalados etentendudos en estas cosas et acuciosos, et mandarles que fagan lealmienteel reparamiento que fuere meester á las cosas que desuso dixiemos.” No entanto, prossegue a mesma lei XX, “si en las cibdades ó en las villas do han meester de facer algunas destas labores, si han rendas apartadas de comun,deben hi seer primeramiente despendidas: et si non complieren ó non fuesehi alguna cosa comunal, entonce deben los moradores de aquel logar pecharcomunalmiente cada uno por lo que hobiere fasta que ayunten tanta quantiade que se pueda complir la labor.”
A lei colombiana de 1834 foi até mais longe do que as Siete Partidas, namedida em que abriu a possibilidade de que os cidadãos tivessem que realizar pessoalmente o reparo, enquanto que o texto espanhol somente falava de uma contribuição econômica para complementar os recursos públicos. Mas a ideia,em sua essência, é a mesma nos dois textos: frente à necessidade de reparar o dano causado a um bem de uso público, os cidadãos podem ser obrigados adar uma contribuição pessoal, caso os recursos públicos sejam insuficientes.
Esta obrigação subsidiária que existia para os habitantes de determinada parte do território permite entender que a ação popular para proteção dosbens de uso público e para assegurar a segurança dos que transitam por elesinseria-se, na verdade, em um contexto bastante específico. Não se tratavade disposição isolada visando apenas a dar aos cidadãos uma via de participação na gestão das questões de interesse geral. Tratava-se, de modo muitomais profundo, de um mecanismo permitindo ao cidadão exigir em juízo oreparo do bem de uso público afetado a fim de evitar que, na hipótese de nãohaver recursos públicos suficientes para o restabelecimento deste bem, eleviesse a ser convocado a fazer o reparo pessoalmente, através do “servicio personal subsidiario”. Logo, o ajuizamento da ação popular não era um atototalmente desinteressado do cidadão. O autor da ação agia, sem dúvida, nointeresse de todos, mas também em seu próprio interesse, pois ao fazer comque o responsável pelo dano fosse condenado a repará-lo, o cidadão evitavaque lhe obrigassem a fazer pessoalmente a obra necessária para o reparo dobem de uso público.
Uma vez estabelecido que a ação popular inseria-se em um contexto bastante específico, cumpre analisar agora o que ocorreu no momento em queesse contexto foi modificado na segunda metade do século XIX.
1.2. A afirmação da exclusividade da administração públicae sua incidência no campo das ações populares
A segunda metade do século XX caracteriza-se não apenas pela multiplicaçãodas competências da administração pública, mas também, e sobretudo, pelaafirmação de sua exclusividade no exercício de tais competências.
O código de policía de Cundinamarca é especialmente revelador destainovação. Ele possui um número muito maior de artigos do que a lei de 1841, que versava, ela também, sobre “policía jeneral”13. Mais fundamentalmente,é possível encontrar várias vezes o vocábulo “exclusivo” ao longo do texto deCundinamarca, o que é uma inovação significativa com relação à lei de 1841.
De fato, no que diz respeito a evitar danos e preservar a segurança dos quetransitam pelos bens de uso público, convém destacar o art. 320 deste código:“Las vías públicas son de cargo exclusivo de la Administración pública, lacual se ocupa: 1º. En la conservación de su uso público, impidiendo todausurpación que pueda hacerse y todo daño que pueda causarse en ellas; 2º. En la libertad y seguridad de su transito; 3º. En la comodidad y hornato para hacer su tránsito fácil y agradable; y 4º. En su composición y mejora, creando recursos para este objeto y disponiendo el modo de aplicarlos.”14
É importante que se compreenda a afirmação da exclusivida de da administração pública sob a ótica da situação vigente na primeira metade doséculo XIX, tal como descrita acima. A exclusivida de significava não apenasque competia à administração pública e a nenhuma outra autoridade a gestãodas vias públicas para a “conservación de su uso público” epara a“libertad y seguridad de su transito”, mas também que a administração não podia maisomitir-se de cumprir suas obrigações. O código de Cundinamarca prevê que a administração pública se ocupa também, e “de cargo exclusivo”, da “composición y mejora” das vias públicas “creando recursos para este objeto”. Logo, não lhe era mais possível alegar a falta de recursos para deixar nas mãosdos cidadãos - através da execução do “servicio personal subsidiario” - a execução de uma tarefa que lhe competia agora a título exclusivo.
Este é o significado profundo da consagração da exclusividade da administração pública: reservar-lhe determinada atribuição, mas, ao mesmotempo, imputarlhe a responsabilidade exclusiva no exercício concreto da competência que lhe foi outorgada.
Uma vez compreendido esse significado, é possível perceber que aexclusividade da administração pública opõe-se à ideia de base da açãopopular. De fato, as ações populares previstas pelo código civil permitemque o cidadão peça ao juiz que adote uma medida similar àquela que a administração poderia ou deveria ter adotado. Abre-se, assim, a possibilidade deque o cidadão, juntamente com o juiz, possa controlar a ação ou a omissãoda administração e, por vezes, substituir-se à administração. Ora, a partir domomento em que se afirma a exclusividade da administração pública, essasubstituição torna-se problemática.
A comparação do art. 320 do código de policía de Cundinamarca com o art. 1005 do código civil15 permite entender o que se está a dizer. Essacomparação revela que estes textos guardam certa semelhança em algunsaspectos, mas também evidencia uma diferença profunda entre eles.
A semelhança é dupla e consiste no seguinte: de um lado, afirma-se a ideiade que é possível ordenar a demolição ou o reparo de um edifício; de outrolado, afirma-se que essa ordem visa a garantir a segurança dos que transitampelos bens de uso público.
No entanto, há uma diferença fundamental entre esses textos, diferençaque não existia entre, de um lado, a lei de 1841 e, de outro lado, o texto dasSiete Partidas e o do projeto de BELLO: o código de Cundinamarca afirma que a competência para impor a demolição ou o reparo de um edifício é exclusiva da administração pública, enquanto que o código civil apresenta uma alternativa: ou a municipalida de ou qualquer pessoa do povo poderá pedirao juiz que ordene a demolição ou o reparo de um edifício.
Fica evidente a partir dessa análise que a exclusividade da administraçãopública e a alternativa municipalidade/qualquer pessoa do povo são postulados contraditórios entre si. Por via de consequência, quanto mais força forconferida à exclusividade da administração pública, menor será o campo emque as ações populares podem ser exercidas.
O estudo da jurisprudência desenvolvida pela Corte Suprema de Justicia permite constatar que foi exatamente o que ocorreu.
1.3. O entendimento da Corte Suprema de Justicia sobre as açõespopulares sob o prisma da exclusividade da administração pública
Pouco tempo depois da adoção da Constituição de 1886 e da reforma docódigo de policía de Cundinamarca, chegou até a Corte Suprema de Justiciaum caso que lhe permitiu esclarecer seu entendimento acerca dos efeitos quea exclusividade da administração pública exercia sobre as ações populares.
O departamento de Cundinamarca havia celebrado um contrato para aconstrução de uma via pública entre Villeta e o rio Magdalena. Em razão de desacordos com o particular contratado, o ente público ajuizou uma açãopedindo que fosse declarada a resolução e a caducidade do contrato emquestão, liberando-se o departamento das obrigações que havia contratado.
Um cidadão quis ingressar em juízo como litisconsorte (parte coadyuvante) do departamento e foi admitido en quanto tal pelo Tribunal Superior de Cundinamarca, sob fundamento dos artigos 1005 e 2359 do código civil. No entanto, a Corte Suprema de Justicia reformou a decisão do tribunal de origem, sob o seguinte fundamento: “Si la acción entablada por el Departamento deCundinamarca tuviera el carácter de popular que erróneamente se le supone,(…) habría que reconocer que un simple particular puede demandar á todoel que haya celebrado un contrato con el Gobierno (…) para que se declarela caducidad del contrato, la indemnización de perjuicios por su falta de cumplimiento, ó en fin, ejercer todas las acciones que natural y legalmente corresponden al que celebró el contrato, lo que evidentemente es absurdo ycontrario á las leyes que organizan las entidades políticas, sus facultades,sus derechos, sus obligaciones y su representación en juicio. No serían yálas Corporaciones y funcionarios á quienes la ley ha encomendado la administración de los intereses comunales y conferido la personalidad jurídicaá quienes tocaría exclusivamente deliberar y resolver sobre la necesidady oportunidad del establecimiento de una acción judicial y sobre el modode promoverla ó proseguirla, sino también á cualquier particular, quien, ápretexto de ser contribuyente ó interesado en la cosa pública, podría tomarparticipación directa en negocios que están encomendados exclusivamente á ciertas Corporaciones ó empleados que ejercen los derechos de la comunidad.
La acción popular no nace siempre del interés más ó menos directo queuna persona pueda tener en alguna cosa, hecho ú omisión: esa acción sólotiene lugar en los casos expresamente previstos en la ley”16.
Como se pode ver, a exclusividade da administração foi determinantepara a solução do caso concreto. A Corte Suprema de Justicia empregou essapalavra duas vezes a fim de justificar a interpretação restritiva que estavadando às ações populares previstas pelo código civil. Entendeu-se que essasações somente seriam admitidas nos casos expressamente previstos, o quelevava a assegurar à administração pública a exclusivida de na tomada de decisões em todos os demais campos não cobertos pelas ações populares.Por outras palavras, nas matérias em que houvesse duplicidade de regras, oprevisto no código de policía de Cundinamarca valeria como regra geral; o código civil seria a exceção.
A resistência da Corte Suprema de Justicia frente às ações popularesera tão grande que, mesmo nos casos expressamente previstos pelo códigocivil, o alto tribunal revelava certo desconforto em julgar procedente a ação.Evidentemente, como os artigos 1005, 2355 e 2359 do código civil não haviam sido revogados, os magistrados não podiam deixar de aplicá-los. Mas éinteressante observar que, mesmo quando julgava o pedido da ação popularprocedente, a Corte Suprema de Justicia chamava a atenção para o fato deque a questão envolvia o exercício de competências administrativas e que, porvia de consequência, o caso poderia ser resolvido na esfera administrativa,sem que fosse necessário levar o caso perante a justiça.
Com efeito, um caso julgado em 23 de abril de 1941 enfrentou a questãoda extração de cascalho com explosivos no perímetro urbano de Chiquinquirá. Com fundamento no art. 2359 do código civil, um cidadão havia ajuizado umaação popular contra o Departamento de Boyacá para evitar a concretização de um dano contingente. Segundo a Corte Suprema de Justicia, “[s]i (…) la explotación de que se trata (…) constituye grandísima falta de previsión, incalificable imprudencia, no tendría justificación desconocer el derecho decualquier vecino a pedir que se suspenda un trabajo que constituye permanente amenaza, si se sigue ejecutando en forma imprudente.” No entanto, na frase imediatamente seguinte, a Corte acrescentou: “Esta es una cuestión que podría decidirse por las autoridades administrativas, ya que en todos losCódigos de Policía departamentales, se establece la prohibición de ejecutar trabajos de la índole de la referida explotación, dentro del perímetro urbanode las poblaciones, sin las debidas precauciones.”17.
Como se vê, até o momento em que este caso foi julgado, as ações populares previstas pelo código civil ainda eram admitidas, mas não eram estritamente necessárias, pois era possível obter o mesmo resultado por via administrativa.
Esta situação, já bastante limitadora das ações populares, agravou-secom a evolução da repartição de competências entre juiz ordinário e juiz administrativo.
2. A evolução do contencioso administrativo
A criação da jurisdição do contencioso administrativo em 1913 não afetou deimediato a competência do juiz ordinário para conhecer das ações popularesprevistas pelo código civil. A prova está no acórdão já citado de 23 de abrilde 1941, no qual a Corte Suprema de Justicia reconheceuse competente parajulgar a ação popular e ordenou ao departamento de Boyacá que deixasse de extrair cascalho com métodos que representassem uma ameaça para asegurança dos transeuntes.
No entanto, em 24 de dezembro deste mesmo ano, foi adotada a lei nº 167que atribuiu novas competências ao juiz administrativo. Entre as inovaçõestrazidas por essa lei encontrase o aumento da lista dos atos que estavamsubmetidos ao controle do juiz administrativo (artigos 34 e 54). Essa medida suscitou a reação da Corte Suprema de Justicia, que declarou a inexequibilidade da lei nº 167 de 1941, por considerála contrária ao artigo 41 do acto legislativo nº 3 de 191018. Uma modificação da Constituição sobreveio em1945 a fim de confirmar a transferência ao juiz administrativo de diversas competências até então reservadas à Corte Suprema de Justicia19.
Face a um movimento tão claro e persistente de transferência de competências ao juiz administrativo, é possível constatar, ao final dos anos 1940,certa hesitação do juiz ordinário a pronunciar-se sobre os casos envolvendoa administração pública. Uma ação popular julgada em 6 de agosto de 1947é bastante representativa desta nova orientação jurisprudencial.
Nesse caso, o autor queixava-se do estado de conservação de uma ponteque, dizia ele, ameaçava a segurança dos transeuntes. Pediuse ao juiz ordinário que ordenasse ao departamento de Antioquia o reparo da ponte emquestão. O artigo 1005 do código civil prevê expressamente a ação popular“ para la seguridad de los que transitan” pelos bens de uso público e prevê que o juiz pode ordenar a “enmienda de una construcción”. Tudo parecia conduzir a que o pedido do autor fosse julgado procedente.
No entanto, segundo a Corte Suprema de Justicia, a ação popular prevista por esse artigo somente seria admissível se a origem da ameaça para asegurança dos que transitam pelos “caminos, plazas u otros lugares de uso público” fosse um edifício privado. Se a origem da ameaça fosse um bem público, a ação popular seria inadmissível. Como este era o caso dos autos, a Corte Suprema de Justicia considerou que “la única relación posible entre los particulares y el Estado en razón de las posibles consecuencas de la falta de cuidado de las entidades públicas en el mantenimiento seguro yadecuado de los bienes de uso común”20 seria a ação de indenização a ser ajuizada pela vítima direta.
Sem dizê-lo de maneira clara, a Corte Suprema de Justicia parece tiraras consequências da transferência progressiva de competências em favor dojuiz administrativo: o juiz ordinário não seria mais competente para imporcomportamentos às autoridades administrativas, embora ainda o fosse quandodo julgamento datado de 23 de abril de 1941 examinado logo acima. As açõespopulares agora somente permitiriam ao juiz ordinário impor o reparo de umedifício em ruínas aos particulares, não à administração pública.
Se a Corte Suprema de Justicia já procurava, em 1947, reduzir o âmbito de aplicação das ações populares para evitar intrusões nas competências dojuiz administrativo, isso se tornou ainda mais evidente a partir do decreto nº528 de 9 de março de 1964. Até então, a competência do juiz administrativo colombiano somente se afirmava nos casos expressamente previstos pelolegislador. Não havia regra geral atribuindolhe todo o contencioso relativoàs ações e omissões da administração pública. Com esse decreto de 1964, aassociação juiz administrativo / ações-omissões da administração pública foiclaramente posta no artigo 20, segundo o qual “[l]a jurisdicción contencioso administrativa está instituida para definir los negocios originados en las decisiones que tome la administración, en las operaciones que ejecute y en los hechos que ocurran con motivo de sus actividades”.
O mesmo decreto previu, pela primeira vez, um tribunal independente para resolver os conflitos de competência entre o juiz ordinário e o juiz administrativo21. Essa prerrogativa permanecera, durante meio século, nas mãosda Corte Suprema de Justicia, o que era, sem dúvida, um elemento que lhepermitia afirmar sua preeminência face ao Consejo de Estado. Ao colocar um fim nessa primazia da Corte Suprema, o decreto procurou fazer com quea competência geral então conferida ao juiz administrativo conduzisse, defato, a que todo o contencioso relativo às ações e omissões da administração pública ficasse nas mãos do juiz administrativo.
Percebe-se claramente que estas inovações fizeram com que as ações populares previstas pelo código civil perdessem progressivamente seu interesse face às especificidades da distribuição de competências jurisdicionais. Essasações somente seriam admissíveis se, de um lado, o comportamento litigioso fosse de origem puramente “privada”, ou seja, não suscetível de ser vinculado ao Estado e se, de outro lado, nenhum ato administrativo autorizasseeste comportamento. Ora, em razão do desenvolvimento do Estado ao longodo século XX, era bastante difícil que um ato suscetível de afetar indivíduosindeterminados (art. 2359 do código civil) escapasse dessa dupla condição.
Conclusão
A particularida de do código civil colombiano de prever as ações popularesnão resistiu ao desenvolvimento do direito administrativo, caracterizado pela afirmação da exclusividade da administração pública na gestão dos bens deuso público e pela criação da jurisdição do contencioso administrativo.
Apesar dos pontos de partida diferentes assumidos nos respectivos códigos civis, Brasil e Colômbia acabaram tomando uma direção similar. No Brasil, a fim de evitar a duplicida de de meios para atingir o mesmo resultado, osredatores do código de 1916 optaram por não prever as ações populares,deixando às autoridades administrativas a tarefa de tomar as decisões relativas aos bens de uso público. Na Colômbia, o desenvolvimento do direito administrativo levou a Corte Suprema de Justicia, em um primeiro momento, a admitir as ações populares apenas nos casos expressamente previstos e, emum segundo momento, a não admitir as ações populares em que se pretendesse impor comportamentos às autoridades administrativas - o que levou, a exemplo do caso brasileiro, a deixar nas mãos da administração pública atarefa de tomar as decisões relativas aos bens de uso público.
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1 GERMÁN SARMIENTO. Las acciones populares en el derecho privado colombiano. Bogotá,1988, p. 8-16. A opinião desse autor é citada em JUAN CARLOS GUAYACÁN ORTIZ . Las acciones populares y de grupo frente a las acciones colectivas. Bogotá: Externado, 2013, p. 219-220. Ao citar essa opinião, Guayacán Ortiz acrescenta: “Cuando en 1887 el legislador colombianodecide adoptar como código civil la codificación hecha por BELLO en Chile, los tiempos para el ejercicio de las acciones populares aún no estaban maduros; hasta donde llega nuestra información no existen huellas de estas acciones en la jurisprudencia, y, a nivel de doctrina, la primera manifestación que encontramos data de 1988, cuando se advertía de la existencia de este valioso instrumento”.Bibliografía
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