Comparação histórica entre medidas de contenção ao endividamento excessivo: o caso romano de 352 a.C. E o anteprojeto de atualização do Código brasileiro de defesa do Consumidor

An historical comparison between containment measures against excessive debt (a roman case of 352 B.C.), and the draft update of the Brazilian Code of Consumer Protection

Dalva Carmem Tonato*

*Doutora em Sistema jurídico romanístico pela università di Roma 'Tor Vergata'. correo electrónico [dalvatonato@hotmail.com].

Fecha de recepción: 15 de julio de 2012. Fecha de aceptación: 27 de agosto de 2012.


Resumem

O presente artigo se propõe a levantar e difundir as fontes históricas da regulamentação do endividamento e – mais especificamente – do endividamento excessivo, restringindo seu âmbito geográfico e temporal aos eventos da antiga Roma republicana, confrontando-as com o atual momento jurídico brasileiro, de regulamen tação do superendividamento. A recuperação, divulgação e análise das fontes históricas têm por objetivo dar a conhecer aos juristas iniciativas de combate ao endividamento excessivo registradas no sistema jurídico de referência – o romano. Este conhecimento permite que se trace um paralelo com as medidas em curso nos nossos dias a fim de resolver se é melhor propor novas soluções (tanto normativas quanto interpretativas) para velhos problemas ou manter as já existentes no estado em que se encontram no direito positivado, aperfeiçoando-as quiçá, além de fornecer subsídios para que se julgue e decida se o dado histórico específico possui ou não a aptidão para interferir nesta eleição.

Palavras-chave: endividamento, superendividamento, mensarii, consumidor, código, defesa, CDC, mediação, regulamentação, comparação, história.


Resumen

Este artículo busca plantear y difundir las fuentes históricas acerca de la disciplina jurídica del sobreendeudamiento en la antigua Roma republicana, confrontándolas con la actual regulación del argumento en el derecho brasileño. La recuperación, difusión y análisis de las fuentes históricas tiene como objetivo dar a conocer las iniciativas de los juristas en la lucha contra el excesivo endeudamiento registrado en el sistema jurídico romano en la fase de su formación. Este conocimiento nos permite establecer un paralelismo con las medidas en curso en nuestros días para decidir si es mejor proponer nuevas soluciones (tanto normativas como interpretativas) a viejos problemas, o mantener los existentes en el estado en que se encuentran en el derecho positivo. Quizás la nueva lectura de las fuentes ofrezca una mejor perspectiva para el juez que decidirá si el argumento histórico tiene o no la capacidad de interferir en su decisión.

Palabras clave: endeudamiento, sobreendeudamiento, consumidor, derecho romano, mensarii, derecho brasileiro, comparación jurídica, regulación.


Abstract

This article intends to explain historical sources and regulations of debt - more specifically - the indebtedness in ancient rome on republican period, confronting them with regulation of indebtedness in brazilian legal system nowadays. The retrieval, diffusion and analysis of historical sources are intended to renovate the jurist initiatives to combat excessive debt recorded in the roman legal system. This knowledge allows us to draw a parallel with the ongoing measures in our day to decide whether it is better to propose new solutions (both normative and interpretative) to old problems or keep existing ones in the state they are in the legal system, perhaps perfecting them, and provide subsidies to that judge and decide whether the given specific historical argument has the ability to interfere in his election.

Keywords: Indebtedness, consumer, brazilian consumer law, roman law.


1. Justificativa

O presente artigo se propõe a levantar e difundir as fontes históricas da regulamentação do endividamento e – mais especificamente – do endividamento excessivo, restringindo seu âmbito geográfico e temporal aos eventos da antiga Roma republicana1, confrontando-as com o atual momento jurídico brasileiro, de regulamentação do superendividamento. A recuperação, divulgação e análise das fontes históricas têm por objetivo dar a conhecer aos juristas iniciativas de combate ao endividamento excessivo registradas no sistema jurídico de referência – o romano2. Este conhecimento permite que se trace um paralelo com as medidas em curso nos nossos dias a fim de resolver se é melhor propor novas soluções (tanto normativas quanto interpretativas) para velhos problemas ou manter as já existentes no estado em que se encontram no direito positivado, aperfeiçoando-as quiçá, além de fornecer subsídios para que se julgue e decida se o dado histórico específico possui ou não a aptidão para interferir nesta eleição3.

O diálogo com as fontes históricas no âmbito do endividamento excessivo foi buscado aqui porque se desenha hoje, no brasil – com possíveis consequências para a construção do direito latinoamericano como um todo – um marco na regulamentação do superendividamento. Foi elaborado, e encontra-se no aguardo de avaliação pelos trâmites do processo legislativo, um importante anteprojeto de atualização do CDC (Código de Defesa do Consumidor), que incorpora principalmente a regulamentação do endividamento excessivo. Amplamente discutido em termos de direito comparado (instrumento de comparação sincrônica), carecem os estudos sobre o tema de dados e fontes históricas (a comparação diacrônica)4. O problema de fundo que move este trabalho é, portanto, o endividamento em sua dimensão histórica e as infinitas possibilidades que desta se retiram.

2. Relevância. O endividamento excessivo como um problema do passado e do presente

O reverso do crédito (seja ele para consumo ou investimento) – o débito – pode se tornar um grave problema seja em circunstâncias de normalidade econômica – quando mal administrado ou por conta de eventos inesperados na vida de uma pessoa – quanto em épocas de crise generalizada da economia5. Esta realidade é um dado constante na história da humanidade desde o advento do fenômeno creditício, mas torna-se ainda mais relevante no âmbito das economias de mercado contemporâneas, que fizeram do amplo acesso ao crédito o mecanismo-chave de sua sobrevivência.

O endividamento excessivo, que a atual técnica jurídica brasileira optou por designar 'superendividamento'6, é ainda mais problemático quando o crédito se destina ao consumo7, gerando um impacto negativo imediato mais grave do que no crédito ao investimento, especialmente porque neste último caso os ordenamentos jurídicos dos diversos sistemas adotam já regulamentação protetiva do devedor8, mas também porque o capital para investimento sempre é um excedente das atividades essenciais, enquanto as somas destinadas ao consumo custeiam inclusive, e é provável que, principalmente, estas. Portanto, é o crédito destinado ao consumo que, carecendo de maior regulamentação para tutela do devedor, torna-se mais propenso a ser fonte geradora de problemas graves, principalmente nos casos de vulnerabilidade social do sujeito endividado em função dele9. Em tempos de crise geral da economia, a situação se agrava ainda mais, pois o problema do endividamento generaliza-se e passa a ser capaz de afetar, além da saúde financeira de indivíduos e famílias, também a macroeconomia (reduzindo ou aniquilando a capacidade de adimplemento, de poupança e de investimento dos indivíduos). Se a necessidade de regulamentação já se impõe em época de normalidade, quando afeta a dignidade do ser humano retirando-lhe o 'mínimo necessário para viver' e projetando indivíduos e famílias inteiras para amargem da sociedade, tanto mais o é em períodos de crise da economia, como a que afeta o mundo atualmente e que teve origem nos Estados Unidos exatamente pela falta de regulamentação do crédito10. Nestes períodos de depressão econômica, o alcance generalizado do superendividamento pode assumir contornos de uma verdadeira ameaça de implosão da organização social vigente, das suas instituições e das próprias conquistas civilizatórias, pois a retirada do mínimo necessário para viver de um grande contingente de pessoas as coloca em situação de 'estado de necessidade', que por sua vez exclui a exigência de um agir conforme o direito11.

Este fenômeno vai conhecido a fundo, para que sua regulamentação seja o mais aderente possível à realidade e consiga ser instrumento não de combate à expansão do crédito, nem de dirigismo econômico, mas de moralização da distribuição do crédito em seu largo acesso, definindo a partir de que momento o desequilíbrio passa a gerar consequências deletérias e contribuindo com meios jurídicos para preveni-lo ou reprimi-lo. É nesta lógica de aprofundamento da compreensão do fenômeno do endividamento excessivo que se insere a metodologia histórica aqui utilizada.

3. Metodologia: o uso da comparação diacrônica

Da restrição do crédito das economias primitivas ao crédito farto, motor da atual economia de mercado, os problemas relativos ao endividamento e à responsabilização dele decorrentes, além das brutais consequências no que concerne à dignidade humana, seguem se impondo e exigindo a composição entre novas e velhas soluções. Portanto, o diálogo com as fontes históricas é um instrumento válido de reflexão sobre as soluções jurídicas do presente, podendo balizar eventuais transformações destas ao – no mínimo – impedir que se cometam os mesmos erros do passado e – no máximo – sugerir soluções inovadoras baseadas em outras precedentes que já funcionaram nas suas circunstâncias, oferendo as condições de entender os mecanismos essenciais por trás delas, sua racionalidade e a pertinência de sua reproposição diante das novas exigências da realidade.

3.1. O caso romano. A instituição dos "quinqueviri mensarii"

Uma situação social marcada por dívidas generalizadas, em parte conflagradas pelas consequências da condução política da cidade é o cenário que determinou, na Roma de 352 a.C., a instituição dos quinqueviri mensarii.

Cerca de 35 anos após o incêndio de Roma pelos gauleses (387 a.C.), ainda sob o impacto da necessidade de reconstrução da cidade, a situação dos extratos inferiores da sociedade era difícil. As guerras frequentes, às quais os pequenos proprietários eram chamados a combater enquanto suas terras restavam incultas e abandonadas aos saques, escusavam moralmente os devedores do inadimplemento de suas dívidas, mas não juridicamente. Uma grande quantidade de plebeus caía, assim, em estado de sujeição aos credores pelo nexum no final do ano 354 a.C.12, e medidas públicas tiveram de ser adotadas, como a limitação dos juros em 12% ao ano e o parcelamento trienal das dívidas pelo Plebiscito Duilio Menenio de unciario faenore,em 357 a.C.13. O caráter vinculante restrito à plebe desta limitação, dado que a totalidade do povo somente foi atingida automaticamente pelos plebiscitos em 287 a.C. (com a Lex Hortensia), fez desta uma medida provavelmente pouco exitosa14.

Uma medida abrangente da totalidade do povo foi inevitável em 352 a.C.15. A assunção pública (in publicam curam) da questão dos débitos pelo consulado misto patrício-plebeu, apoiado pelo senado, deu origem assim, a um provimento administrativo e contingencial de mediação das dívidas entre credores e devedores privados, a instituição dos quinqueviri mensarii (três plebeus e dois patrícios). Tratava-se de cinco cidadãos comuns, que provavelmente exerciam no âmbito privado a função de banqueiros, nomeados pelos cônsules e postos à disposição do povo para, com suporte do crédito público e atuando como árbitros imparciais na avaliação dos bens do devedor aceitos como quitação pelo credor, favorecerem o adimplemento das dívidas e impedirem as consequências deletérias do débito generalizado.

A narrativa sobre o provimento é de Tito Lívio, que repercute a notícia dos anais com rica descrição16. Diz Lívio em seu livro vII que:

"Uma vez predispostos os ânimos à concórdia, os novos cônsules buscaram resolver a questão das dívidas, a única que parecia manter divididos os ânimos, e dispuseram que o poder público assumisse a responsabilidade de extingui-las, instituindo uma comissão de cinco membros, os quais foram chamados 'mensarii' pela sua função de regular a concessão de dinheiro. A equidade e a solicitude com que absolveram a tarefa valeu-lhes a honra de serem mencionados em todos os anais: eles foram Gaio duílio, Públio Décio Mure, Marco Papírio, Quinto Publílio e Tito Emílio, os quais souberam superar a dificuldade de uma matéria de delicado trato, tanto que a solução aplicada deixava satisfeitas senão ambas as partes, pelo menos uma delas, dando prova de moderação sob qualquer perspectiva, e, sobretudo fazendo de modo a que o uso do dinheiro público não se resolvesse em uma perda. De fato as dívidas atrasadas e de difícil quitação mais pelo descuido dos devedores que por uma efetiva falta de possibilidades patrimoniais, o erário as pagava em dinheiro, por meio de bancas instituídas no foro, sob condição, porém, que se dessem cauções públicas, ou eram extintos com os bens avaliados a um preço equitativo, de modo a que sem injustiças, mas também sem reclamações de ambas as partes, uma grande quantidade de dívidas foi extinta (trad. minha)17.

Este provimento de iniciativa político-administrativa, atuação extrajudicial e adesão voluntária, viabilizou uma alternativa à execução pessoal direta e imediata, marcando uma opção inovadora de preferir usar o caixa público e agentes especializados na concessão de crédito como mediadores, a expor a cidadania à degradação e miséria18, mas principalmente às penas corporais e ao aprisionamento do corpo que decorriam dos mecanismos de proteção jurídica do crédito na época19. Sem romper com tais mecanismos remanescentes da fase pré-cívica, por entenderem que o instituto do crédito devia ser protegido, mas frente a uma hipótese ainda não relevada pelo ius até então – a consideração de que os devedores naquelas circunstâncias não eram responsáveis exclusivos pela situação de endividamento extremo e de que essa parcial responsabilidade não poderia gerar responsabilização integral – a opção de conciliação e a garantia pública das dívidas para evitar as consequências jurídicas mais graves do inadimplemento dos débitos deve ter sido considerada a mais razoável dentro das amarras mentais da tradição jurídica vigente.

Exposto o desequilíbrio da assunção da responsabilidade dos débitos exclusivamente pelos devedores quando as causas de tais débitos não lhes eram inteiramente imputáveis, estavam postas as bases para que se percebesse a insuficiência dos mecanismos puros do ius e a imperfeição do modelo de responsabilização por inadimplemento integralmente atribuído ao devedor, mas isto não aconteceria tão cedo, tanto que a finalidade imediata do provimento foi combater a crise e os impactos sociais gravíssimos da generalização dos débitos e da aplicação em massa dos mecanismos de proteção do crédito, mantenho inalterados os esquemas jurídicos.

Na realidade da cidade de pequenas dimensões, a pressão abusiva sobre a dignidade e mesmo a vida dos concidadãos despertou a consciência de que a responsabilidade frente ao débito devia ser redimensionada, mas a tradição e a pressão imposta pela manutenção da confiança representada pelas garantias do crédito eram um óbice praticamente intransponível naquela ocasião e o seria ainda ao longo de boa parte do direito romano.

A medida visava à preservação do crédito e da confiança pública, e para isso buscou favorecer o adimplemento entre privados fazendo uso da mediação por agentes especializados em crédito e autorizados a usarem os recursos do tesouro público, sob garantias. Não há informação de uma tipologia específica de débitos abrangida pela medida e nem de tipologias de devedores em especial. Segundo consta da narrativa histórica, naqueles casos em que as dívidas atrasadas haviam se tornado de difícil quitação mais por inércia do devedor (que provavelmente preferia postergar a quitação da dívida até onde chegasse a tolerância do credor a ter de se desfazer de seus bens para quitá-las) que por efetiva falta de meios patrimoniais era possibilitada a antecipação de dinheiro público sem juros, mas sob garantia (justamente dos bens do devedor, que deixava de sê-lo do credor privado para ser da Res Publica em condições menos onerosas). A conduta prudente dos gestores encarregados teria resultado na ausência de prejuízo para os cofres públicos e na quitação de grande parte das dívidas pendentes, com a satisfação de credores e devedores, porém, seu caráter contingencial e descontinuado, valendo apenas para os débitos passados e, sem incidir propriamente nas causas do problema, deixaria que a situação antiga logo se repropusesse.

Nos casos mais graves, em que provavelmente faltassem meios considerados suficientes pelo credor para a quitação, mas ainda restassem bens do devedor sobre os quais tratar, o encarregado se propunha a avaliar equitativamente os bens dados em pagamento20, sem obrigatoriedade de aceitação por parte do credor.

A opção pela mediação diante de um elemento novo – qual seja ele o reconhecimento de fatores externos à vontade do devedor no agravamento dos débitos per capita e no seu consequente inadimplemento – seria um mecanismo para amainar ou resolver o problema imediato sem quebrar a ordem jurídica posta, levantando a questão da necessidade da atualização do direito, o que, todavia não ocorreu. Preferiu-se a medida paliativa do uso do caixa público e a imputação de perdas parciais aos credores e devedores (certamente mais a estes que aqueles) para chegar-se a um denominador comum de interesses.

A fonte histórica afirma que a medida foi tida como uma solução exitosa, com excelentes resultados na mediação entre credores e devedores tanto que os nomes dos encarregados da tarefa constaram de todos os anais. Todavia, restringiu-se a atacar os efeitos do problema, permitindo às causas jurídicas e sociais do débito que, intocadas, repropusessem a idêntica questão poucos anos depois21. Seu maior valor esteve em relativizar o direito puro e simples do crédito frente à alteração da normalidade inviabilizadora da quitação por razões externas ao controle do devedor, neste caso, as guerras frequentes e o incêndio da cidade pelos gauleses em 387, que levou os cidadãos – patrícios e plebeus – a se endividarem visando à reconstrução de seus bens e a terem dificuldades para adimplir os acordos. Resolveu contingencialmente a situação, mas não dotou o direito dos mecanismos adequados para evitar o endividamento generalizado, de grandes proporções, nem para remediar seus efeitos deletérios22.

3.2. O caso brasileiro. Regulamentação do superendividamento pelo anteprojeto de lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor

A situação atual vivenciada pelos brasileiros, mas também pelos países emergentes em geral, é bastante diversa daquela romana. No caso moderno, o endividamento generalizado tem outras causas. No cenário internacional, o momento é de crise da economia. No cenário interno, a maior estabilidade econômica aliada à solidez das instituições financeiras favoreceu a migração de capital externo para investimento e facilitou a captação dos recursos pelos bancos, reduzindo o custo destas operações e facilitando o largo acesso ao crédito após anos de restrição e juros altíssimos. Concomitantemente, o mercado interno expandiu-se por conta da aceleração da economia e do consequente aumento do nível de emprego, conjugados com a melhoria das condições de vida de uma parcela marginalizada da população atingida por programas governamentais de distribuição de renda. Em síntese, a ampla oferta e demanda por crédito em tempos de estabilidade econômica é o que dá as condições para que o endividamento excessivo brasileiro se instale, mas não é a sua causa. A gênese do desequilíbrio é mais complexa e assenta em um fator comportamental que está na base da sociedade globalizada, caracterizada pela economia de mercado, focada no consumo. Não estar dentro deste 'mercado', e, portanto, não consumir, marginaliza e exclui. A maior complexidade das sociedades atuais faz com que também as necessidades essenciais se ampliem, e mesmo o acesso à água, energia elétrica, gás, telefonia, internet, dependem do mercado. Em um contexto de estabilidade econômica, este consumo acabará ancorado no crédito.

Nos países emergentes, o ingresso no mercado de consumo - de produtos e serviços, mas também, de crédito para a aquisição destes - por uma parcela da população despreparada em termos de educação financeira e desconhecedora dos mecanismos escusos do mercado (neuromarketing, assédio de consumo etc.), aliado aos fatos corriqueiros da vida, como um descuido ou infortúnios inesperados, representa um caminho fácil para o endividamento generalizado. Isso nem tolhe que, mesmo nos extratos mais abastados e informados da sociedade o endividamento também ocorra e que se torne excessivo. Todavia, o endividamento de consumo generalizado, além da ruína dos implicados, aporta um impacto social grave, com risco inclusive para as instituições jurídicas.

Esta realidade chamou a atenção para a necessidade de regulamentação e o brasil vive hoje um momento importante no tratamento jurídico do débito excessivo. Gesta-se no parlamento, com anteprojeto apresentado por uma comissão técnicade juristas independentes, a atualização do Código de Defesa do Consumidor de 199023. Além de atualizar as normas gerais do código, o anteprojeto visa instaurar normas específicas sobre o superendividamento, criando mecanismos de prevenção e repressão do fenômeno.

Isso afeta a construção do direito no brasil ao introduzir, para os casos de superendividamento nas relações de consumo, um modelo de mediação coletiva entre o conjunto dos credores-fornecedores e o devedor-consumidor superendividado. Ao fixar o conceito de superendividamento, determina-se quando existe autorização para o pedido judicial de conciliação coletiva. O juiz 'poderá' e não 'deverá' autorizar o procedimento, em caso positivo, o mediador será o próprio juiz ou um conciliador credenciado. O esquema é muito simple: caso algum credor não compareça na audiência de conciliação coletiva, seu crédito e os decorrentes encargos de mora ficam suspensos. já o plano de pagamento concordado com os credores que aderirem, tem valor de coisa julgada e força de título executivo, o que põe estes credores-fornecedores em situação de vantagem diante dos que optaram por não fazê-lo, haja vista que estes ainda terão que passar pela fase processual de conhecimento acerca do seu crédito, enquanto aqueles, se por um lado abrirão mão de algo -seja ao dilatar o prazo de pagamento em até cinco anos, seja ao abater parte do débito – por outro ganharão uma condição 'preferencial', passando a imediatamente poder exigir a execução da dívida conforme o plano de pagamento.O anteprojeto ainda não foi submetido ao iter do processo legislativo e mudanças poderão ser votadas dentro do processo democrático, mas este mecanismo central aparentemente deverá ser mantido, sendo o cerne da nova legislação. O modelo estende para as relações de consumo um dos pilares da recuperação judicial de empresas, ou seja, a negociação com os credores em bloco e a formulação de um plano de pagamento (no direito empresarial, dito 'plano de recuperação de empresas').

Até agora, tinha-se apenas a boa-fé objetiva, com a hipótese de discutir individualmente os contratos com os credores, sempre judicialmente (o que agravava a judicialização das relações consumeiristas). Com o projeto, além do mecanismo de mediação coletiva, há uma tipificação da boa-fé objetiva no âmbito do direito à informação, publicidade etc. Nas palavras da comissão elaboradora, a proposta visa criar "patamares de boa-fé e de conduta responsável dos fornecedores e intermediários na concessão de crédito ao consumidor e seu pagamento".

As regras sobre o superendividamento, inseridas em uma seção própria dentro do capítulo v do CDC (da Proteção Contratual), objetivam, "prevenir o superendividamento da pessoa física, promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, de forma a evitar a sua exclusão social e o comprometimento de seu mínimo existencial".

Seu marco principio lógico é definido pela boa-fé, função social do crédito ao consumidor e respeito à dignidade da pessoa humana. Com base em tais princípios, o anteprojeto define as regras que identificam e buscam evitar o superendividamento ou administrá-lo do melhor modo quando já instaurado.

Neste sentido, o anteprojeto define como consumidor 'superendividado' aquele que comprometeu mais de trinta por cento da renda líquida mensal com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas excluídas o financiamento para a aquisição de imóvel para moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para liquidação do total do passivo.

Considerando como principal mecanismo de prevenção ao superendividamento a informação, esta tem papel especial e regulamentação detalhada. Para que os consumidores possam decidir de maneira refletida sobre a necessidade do crédito e para que tenham clareza sobre a globalidade dos ônus e obrigações assumidas, a proposta regula o direito à informação, publicidade24, intermediação e oferta de crédito aos consumidores, assegura a entrega de cópia do contrato e informações obrigatórias e institui o prazo de arrependimento de sete dias após o contrato de crédito (sob condições).

Com vistas à proteção dos consumidores vulneráveis, a proposta incorpora o instituto do assédio de consumo, dando tratamento especial a idosos e analfabetos.

Também adota normas para facilitar a negociação com os fornecedores em caso de cobrança de valores contestados, erro ou fraude cometida em seus cartões de crédito e meios de pagamento.

Os contratos de crédito para a aquisição de produtos e serviços passam a ser, em algumas situações25, conexos com o contrato principal que viabilizam.

As cláusulas que restrinjam o acesso ao judiciário o comportem renúncia à impenhorabilidade do bem de família do consumidor ou fiador, considerem o silêncio do consumidor como anuência aos valores cobrados em contratos de crédito preveja uso de legislação estrangeira que limite as regras do CDC, entre outras consideradas abusivas, são cominadas com a nulidade absoluta.

O anteprojeto também garante a preservação de parte da remuneração do consumidor que represente o "mínimo existencial", em especial se o pagamento do crédito envolver autorização prévia do consumidor pessoa física para débito direto em conta-corrente, consignação em folha de pagamento, ou qualquer modo que implique reserva de parte da remuneração.

Por entender que é dever de ambas as partes da obrigação zelar prioritariamente pelo seu destino natural (o adimplemento), impõe ao concedente do crédito o dever de avaliar a capacidade econômica do consumidor para quitar a dívida e de verificar sua situação perante cadastros de proteção ao crédito e decretando a inexigibilidade ou redução de juros ou quaisquer anexos a principal em determinados casos de desrespeito de tais deveres.

No tocante aos mecanismos, prevê a conciliação com o complexo dos credores do consumidor superendividado, que pode ser pedida ao juiz e realizada diante deste ou de conciliador credenciado no juízo, com a produção de um plano de pagamento. O acordo homologado pelo juiz assume a condição de coisa julgada e passa a constituir título executivo, devendo constar dele a referência quanto à suspensão ou extinção das ações judiciais em curso, a data a partir da qual será providenciada exclusão do consumidor dos bancos de dados e cadastros de inadimplentes, o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

O anteprojeto já foi entregue à presidência do Senado em 14 de março de 2012. É caso de aguardar-se ainda o resultado das modificações aportadas pelas alterações naturalmente decorrentes do processo legislativo. Mas o mecanismo central – de mediação coletiva – e as suas engrenagens básicas, tendem a, como já dito, serem preservados.

Considerando a circulação de modelos entre os sistemas jurídicos, mas principalmente e com maior intensidade entre ordenamentos ao interno do mesmo sistema e, principalmente, o fato de o anteprojeto ser produto do trabalho de uma comissão de juristas que conta com a presença ativa e fundamental da professora Cláudia Lima Marques, atual responsável pela redação do CDC das Américas, é de se esperar que o anteprojeto, e os mecanismos por ele propostos, tenham reflexos nos caminhos que aquele código-modelo proporá para a evolução da legislação consumeirista latino-americano como um todo.

4. Resultados

Em Roma, o caráter de subsistência da economia no ano 352 a.C. permite afirmar que se tratem de débitos de tipologia semelhante aos atuais débitos de consumo. A inexistência de uma norma apropriada para regular a situação do endividamento e a percepção de que a insolvência generalizada não era responsabilidade apenas dos devedores foram ascausas da medida que criou circunstancialmente os mecanismos de conciliação aplicáveis aos que julgassem que seus débitos estavam fora de controle. A solução foi exitosa, mas restrita a um único episódio e não alterando as regras jurídicas que faziam a responsabilização pelo adimplemento recair apenas sobre o devedor.

Já a atualização legislativa brasileira visa criar um mecanismo duradouro de conciliação, e para isso, precisa em primeiro lugar definir a situação objetiva de enquadramento do devedor-consumidor que garanta a adesão a tal mecanismo, qual seja, a de superendividado, definindo-lhe os parâmetros26.

A inovação legislativa permite que o devedor-consumidor que se encontre 'em estado de superendividamento' recorra ao juízo para buscar uma conciliação com os credores em grupo, o que, se não representa um êxito certo, ao menos impõe ao conjunto de credores conhecer a real situação do devedor e agiliza a exequibilidade do crédito pelos aderentes do plano de pagamento (que se con-substancia, enquanto acordo homologado judicialmente, em título executivo que dispensa ulterior cognição)27.

Do contraste da experiência romana em relação ao fenômeno do endividamento28 com as medidas atualmente em curso de implantação no brasil, assumem forma algumas percepções sobre o fenômeno:

4.1. A mediação adquire relevo, com a presença de um conciliador (facilitador) externo a fim de que haja acordo entre credor e réu, principalmente – como ocorreu em ambas as situações – quando o mediador é amparado pelo poder público. A renegociação (repactuação) das dívidas por acordo direto e espontâneo entre as partes é uma realidade praticamente inexistente ou muito difícil de ocorrer, haja vista cada credor ser titular de uma expectativa que se presume legítima a priori porque fundada no acordo de vontades juridicamente tutelado em abstrato.

Em Roma, no caso avaliado, o seu relevo era determinado pela ausência de uma regulamentação de controle do endividamento, ou ainda pior, porque a responsabilidade pelo adimplemento das obrigações assumidas era totalmente imputada ao devedor (inclusive respondendo ele por eventos alheios ao seu controle).

No brasil – que está implantando uma norma para regulamentar o superendividamento – ela assume importância como mecanismo desta porque, por mais que a atual previsão geral da boa-fé objetiva como limite à tutela jurídica da vontade seja sim uma conquista importante, esta acaba por induzir à judicialização extrema, uma vez que a baliza determinadora do conteúdo da boa-fé é fixada pelo juiz no caso a caso. É muito difícil, portanto, que um credor abra mão daquela expectativa protegida juridicamente de modo abstrato em função da previsão geral da boa-fé objetiva, mas isso pode ocorrer se um terceiro legitimado para tanto assume a condição de conciliador e, diante de um cenário negocial descrito pelas versões do credor e devedor, tente mostrar às partes o modo mais razoável de se chegar –orientados pelas regras de boa-fé objetiva– ao adimplemento da obrigação. Em assim fazendo, o conciliador evidencia aos credores em conjunto a situação real do devedor insolvente. O credor, ao vislumbrar a conjuntura completa do devedor face à totalidade das obrigações de consumo assumidas por ele, passa a ter melhores condições de juízo acerca da real capacidade econômica do devedor, podendo-se obter daquele, com mais facilidade, a aceitação de uma quitação parcial ou mesmo um perdão de dívida no sentido do menor dano possível do que na negociação individual, e levando o credor aderente a abrir mão de instaurar um processo judicial oneroso e demorado – que poderia até não lhe dar integral ganho de causa. Ao preferir a mediação ao litígio, no qual pode ter de assumir a perda ou dilação de parte ou da totalidade do seu crédito, o credor-fornecedor pode, por sua vez, estar apostando na fidelização do seu cliente, principalmente considerando a realidade do mercado de consumo, na qual é certamente melhor manter um devedor-consumidor com boa saúde financeira do que arruinado e sem chances de se reerguer em curto prazo, ou seja, pode ser um melhor negócio para o credor-fornecedor fidelizar o devedor-consumidor – sendo parte da sua reinserção ao crédito, ainda que a um determinado custo – do que possuir um consumidor futuro a menos.

Para o judiciário a mediação adquire valor imensurável, porque aglutina e evita, no plano de pagamento, incontáveis ações de conhecimento relativas à cobrança dos débitos individuais. Isto reduz o número de processos – o que é um problema do presente no brasil.

4.2. A distribuição adequada, entre credor e devedor, da responsabilidade pelo adimplemento da obrigação – especialmente as contratuais – ainda não encontrou seu modelo jurídico perfeito.

No caso romano o modelo jurídico ainda fazia da parte devedora a única responsável pelo adimplemento das obrigações assumidas e esta sua responsabilidade era inescusável em absoluto.

No modelo brasileiro – que segue os padrões de evolução do direito do sistema romanístico – tal responsabilidadeé partilhada, as causas excludentes e atenuantes do inadimplemento previstas e a extensão da responsabilidade do devedor nas obrigações contratuais é passível de relativização pela boa-fé objetiva29.

Todavia, a boa-fé objetiva é uma cláusula geral que abre caminho a infinitas hipóteses de tipificação nos vários momentos da relação obrigacional, principalmente nas de contrato. Este modelo, apesar de completo porque fluido e aberto30, ao remeter para o juiz do caso concreto as suas explicitações tópicas, gera insegurança na prática negocial, o que se reflete em judicialização extrema.

No caso dos mensarii, talvez se possa dizer que há indícios de uma tomada de consciência sobre a existência e relevância das circunstâncias alheias à parte devedora, capazes de excluírem ou atenuarem sua responsabilidade – no específico representada pela condução política da Res Publica, que ao fazer recurso a guerras frequentes, tolhia os devedores da atuação regular de suas atividades econômicas e da obtenção dos recursos necessários para adimplirem suas obrigações – apesar de esta conscientização ter sido associada apenas à situação momentânea, não tendo se aprofundado na alteração dos mecanismos jurídicos da obrigação. E os credores também estavam submetidos à mesma situação generalizada, motivo pelo qual o caixa público foi disponibilizado para fazer frente à situação.

Na situação brasileira, a pressão social em direção ao consumo – tornando-o não raras vezes um processo irracional – e a oferta em grande parte irresponsável de crédito para a sua realização (sem uma análise eficiente da capacidade econômica do tomador do crédito ou sem informar de modo detalhado e fácil a integralidade dos ônus que o devedor está assumindo), são fatores que claramente apontam para uma conduta do agente fornecedor de crédito incompatível com o dever mútuo de zelar pelo adimplemento da obrigação. Esta postura, frontalmente contrária à boa-fé objetiva, de confiar no direito abstrato de tutela do crédito para resguardar a sua expectativa de adimplemento, abrindo mão dos cuidados mínimos de uma contratação sadia e viável (que não implique na necessária ruína do devedor), sugere o descumprimento do dever de diligência e indica a necessidade de rever a responsabilização única e exclusiva do devedor. Atingida a percepção de que há momentos em que a responsabilidade pelo superendividamento não é apenas do devedor (no anteprojeto o credor tem o dever de avaliação da capacidade econômica do devedor e o dever de prestar com clareza todas as informações sobre as obrigações assumidas pelo devedor), chega-se a uma compreensão da relação débito-crédito pautada pela boa-fé objetiva, de acordo com a qual ambos têm de colaborar para que a relação chegue ao seu término do modo mais exitoso e que melhor satisfaça as partes. Em determinadas circunstâncias, o melhor para o credor é receber menos, aceitando o acordo que não receber mesmo e ninguém melhor do que ele próprio para chegar à conclusão de se e quando deva ceder e aceitar um acordo.isso é mais verdadeiro ainda para o credor-fornecedor, que ainda mantém um consumidor 'fidelizado' para o futuro. Para o devedor as vantagens são óbvias.

Em Roma os devedores que se socorreram na medida e buscaram a negociação o fizeram para evitar um nexum inire ou para obterem uma nexum liberatio. Portanto, optar pela conciliação com os credores era um modo de evitar a queda em estado de sujeição. Esta solução pontual é tomada apenas porque fica evidenciada a generalidade de um endividamento cujo inadimplemento não é reconhecidamente culpa exclusiva dos devedores. Todavia os mecanismos jurídicos de tutela do crédito restam inalterados, recaindo ainda durante longo tempo da história de Roma o ônus do adimplemento apenas sobre o devedor.

No caso brasileiro, a opção pela conciliação evita, para o devedor, a inclusão ou permanência de seu nome em cadastros de proteção ao crédito e ações executivas ruinosas (com único e exclusivo limite nas proteções legais sobre o bem de família e a garantia do mínimo existencial). Para o credor, a vantagem reside em evitar um processo judicial longo e custoso, que pode, inclusive, ter não ser exitoso se o devedor já não contar mais com bens suficientes na época da execução. Para a sociedade, representa uma economia expressiva de ações judiciais, já que a adesão à mediação coletiva gera um plano de pagamento com força de coisa julgada e valor de título executivo, o que evita que cada credor acione o devedor individualmente.

O que o caso romano parece nos deixar em termos de reflexão é um questionamento: "o que está errado nos mecanismos jurídicos de tutela do crédito em abstrato, quando se chega a um nível exagerado de endividamento?".

Na história romana, foi extremamente árdua a reversão da tutela formal e abstrata do direito de crédito e a imputação da responsabilidade por adimplemento não mais exclusivamente a uma das partes da obrigação (o devedor). De fato, é função precípua do Direito Civil tender à igualdade; isso significa encontrar o justo equilíbrio na responsabilização entre credores e devedores no cumprimento da obrigação e reduzir os mecanismos de sujeição.

No atual momento brasileiro e latino-americano do direito do consumidor superendividadonos cabe questionar: o que ainda há de errado no direito de proteção ao crédito em abstrato? o brasil deu um grande salto qualitativo com a adoção da boa-fé objetiva como critério de hetero-integração contratual, inclusive e principalmente no CDC. Todavia, o uso da boa-fé como cláusula geral repercutiu no aumento da judicialização das relações obrigacionais de consumo, já que o conteúdo da boa-fé objetiva será definido pelo juiz no caso a caso. O que o anteprojeto visa conseguir pela via legislativa é, portanto, dar início a um processo de tipificação legislativa da boa-fé objetiva, mas, não tem o condão de integralizar esta tarefa, até porque o caráter de cláusula geral da boa-fé objetiva pressupõe a sua perene abertura para as novas realidades. Paralelamente, a tipificação esmiuçada da boa-fé pela via de um anteprojeto técnico a ser submetido à votação no parlamento traz o risco de subverter o caráter geral e principiológico do CDC brasileiro que funcionou tão bem até o momento, talvez exatamente por esta sua qualidade. As tipificações expõem normas pontuais ao jogo democrático no parlamento, no qual vence o interesse que naquela conjuntura muito efêmera está melhor representado. A solução intermediária foi, então, para contrastar o efeito colateral da cláusula geral de boa-fé objetiva, obter uma solução concordada entre credores-fornecedores e devedores-consumidores a fim de manter a evitar os prejuízos da judicialização excessiva para todos os envolvidos sem alterar o mecanismo de funcionamento da cláusula de boa-fé objetiva.

Os juristas da comissão de atualização do CDC brasileiro parecem ter encontrado uma solução que faz frente às exigências da realidade, garantindo a abertura e fluidez da cláusula de boa-fé objetiva e contrastando a problemática da amplificação do uso do judiciário para resolver as mais comezinhas relações obrigacionais de consumo com a mediação do conjunto de credores-fornecedores com o devedor-consumidor.


Notas

1Por que o problema do endividamento foi uma constante em Roma, sendo causa (junto com as questões da cidadania e agrária) de revoltas intestinas que promoveram importantes transformações sociais. Uma ampla coordenação de medidas e ações, como a criação de leis, magistraturas e institutos,foi articulada para conter e contrastar seus efeitos danosos. Portanto, estudar o fenômeno do endividamento tendo a Roma antiga como referencial histórico significa poder avaliar, com o devido distanciamento, um fenômeno que produz até hoje desequilíbrio social e ameaça a dignidade do ser humano. Além disso, a riqueza de fontes diretas é única. No que tange aos aspectos jurídicos, a opção pelo período romano se justifica pela ligação essencial entre o ordenamento brasileiro e o direito romano. É deste, afinal,que derivam a maioria dos esquemas jurídicos essenciais do ordenamento jurídico brasileiro, evidenciando a sua força genético-conformadora.
2Sobre o sistema jurídico latino-americano como sistema derivado do sistema jurídico romanista, leia-se: Catalano, P. Sistemas jurídicos, sistema jurídico latino-americano e direito romano, em Revista Direito e integração, brasília, 1981, IDEM, Diritto romano attuale, sistemi giuridici, diritto latinoamericano, em Diritto e persone, I, Torino, 1990, 89 s.; Schipani, S. Reconhecimiento do sistema, interpretação sistemática, harmonização e unificação do direito, em Revista Direito GV, 2009, 491 s., Esborraz, D. F. La indiviadualización del Subsistema jurídico latinoamericano como desarrollo interno propio del Sistema jurídico romanista: (i) La labor de la Ciencia jurídica brasileña entre fines del siglo XIX y principios del siglo xx, em Roma e America, 21/2006, 42 s.; (II) La contribución de la Ciencia Jurídica argentina en la primera midad del siglo xx, em Roma e America, 24/2007, 33 s.
3Sobre as finalidades de um estudo histórico, pode-se dizer que vise assentar as bases para uma comparação diacrônica das instituições jurídicas ao interno do sistema, com vistas à compreensão dos seus complexos desenvolvimentos, à avaliação dos possíveis nexos de causalidade entre a regra jurídica e os efeitos da sua aplicação, essencial à atuação do jurista enquanto permite realizar 'eleições' no sentido pleno deste termo -qual juízo qualitativo, fundado em critérios estáveis ou constantes – na assunção plena das suas responsabilidades, cf. R. Orestano, Il "metabolismo" dei giuristi, em Il Foro Italiano, 4, Società editrice del "Foro Italiano", Roma, 1981, p. 4. Ainda nas palavras deste estudioso, quando o tempo e a história determinam "condicionamentos e condições a afrontar, põem cada homem – no transcorrer da sua vida [...]de frente a sucessivos leques de opções. Isto solicita continuamente 'escolhas de campo', confirmações e mudanças, com responsabilidades proporcionais ao standard de cultura e de maturidade e à consciência que ambas deveriam comportar" (trad. minha). já a temática da inerência do fator tradicional no direito é analisada por F. Gallo na introdução de Synallagma e conventio nel contratto. Ricerca degli archetipi della categoria contrattuale e spunti per la revisione di impostazioni moderne. Corso di diritto romano 1, Torino, 1992, p. 13. Estudos históricos podem servir também para perquirir se existe constância no que se entende por direito aplicável e direito ideal em momentos culturais marcados por idênticas ou semelhantes 'formações sócio-econômicas' relacionadas com as formas de produção' e dos termos em que se explicita, cf., Serrao, F. Diritto romano e diritto moderno, em Rivista di diritto civile 1, 1982, p. 520 e 521, embora este autor enquadre a questão nos termos de "continuidade" das formas jurídicas somente enquanto vinculadas a determinadas relações de propriedade ou produção, e portanto, de institutos jurídicos específicos ou de complexos de institutos, mas não do ordenamento ou do sistema de direito privado. Ele não considera o aspecto axiológico, da "continuidade" de princípios constitutivos, uma vez que sua visão pode ser considerada fruto de uma compreensão 'marxista' das relações entre direito e economia, que inverte a lógica original, do direito conformadorda economia e não vice-versa, pois, assim como explica N. Irti, Diritto e mercato, em Confini attuali dell'autonomia privata, Padova, 2001, p. 162: "tanto no marxismo como no liberalismo e neoliberalismo, o direito [político-jurídico] é um reflexo, não determinante da economia [naturalística], que possui suas leis naturais" (trad. Minha); mas, ao invés: "qualquer mercado é locus artificialis, construído pelo direito e conformado segundo critérios e vontades humanas", cf. IDEM, Diritto europeo e tecno-economia, em Rivista di diritto civile 1, Padova, 2006, p. 1 (trad. minha). Por fim, o estudo histórico pode se prestar a inspirar e pautar novas propostas para velhos problemas, ou, velhas propostas para velhos problemas com as respectivas e necessárias adequações.
4A distinção entre ambos os tipos de comparação está no elemento temporal. Enquanto na comparação diacrônica o que varia é necessariamente o elemento 'tempo' (confrontar normas, institutos, conceitos ou princípios no tempo), na sincrônica a comparação é entre objetos contemporâneos (confronta normas, institutos, conceitos ou princípios contemporâneos, mas de distintos ordenamentos, sistemas ou subsistemas).
5E de um lado o crédito pode ser um motor da economia quando concedido e utilizado de modo equilibrado e saudável, de outro também é verdade que uma atitude desequilibrada em relação a ele pode conduzir a sérios problemas de repercussão individual e social.
6O superendividamento pode ser definido como "a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos)", cf. C. Lima Marques, Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul, em Revista de Direito do Consumidor, 55, São Paulo, julho-setembro de 2005, p. 11 e 12. Já a lei francesa sobre a matéria define superendividamento, em seu art. l.330-1, como a "impossibilidade manifesta do devedor de boa-fé de fazer face ao conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas". Ou, ainda, na definição da doutrina portuguesa, há superendividamento nas "situações em que o devedor se vê impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto das suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que o não possa fazer no momento em que elas se tornem exigíveis", cf. Leitão Marques, Maria M. et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra, 2000, p. 8.
7Principalmente porque, no âmbito do crédito para o consumo, estão englobados tanto o essencial para viver quanto o supérfluo. já no âmbito do crédito para investimento, trata-se sempre de um excedente transformado em capital para a produção de novas riquezas. Nas economias de mercado, o consumo é o fundamento e vai estimulado. É aqui que entra em jogo o crédito para o consumo, visando possibilitar hoje a aquisição de bens e serviços que só serão pagos ao longo de um determinado 'tempo'. O amplo acesso ao crédito para o consumo acelera a economia e a alavanca até, o que traz muitos benefícios para a sociedade em geral, aos tomadores e às instituições concedentes de crédito. Todavia, em nossos dias, ocorre uma espécie de 'assédio de consumo', com o mercado criando mecanismos sub-reptícios para que a experiência do consumo e do mesmo modo a experiência do crédito para o consumo seja uma experiência irracional (visando ampliar a sensação de que bens e serviços supérfluos sejam tidos como essenciais e de que traduzem um prazer ao alcance dos consumidores, ainda que para isso tenham de se servir do crédito). Prova disso são as campanhas de publicidade e estratégias de captação de clientela com uso de recursos cada vez mais sofisticados, inclusive apoiados em descobertas da neurociência (os neurônios-espelho), dando origem ao chamado 'neuromarketing' (uso de dados de medição direta do cérebro por ressonância magnética funcional a fim de determinar as respostas comuns e os caminhos do cérebro diante dos diversos apelos da publicidade visando o consumo). A esta relação complicada e emocional com o consumo, une-se o crédito, que facilita e antecipa as transações e a aquisição dos bens necessários e os que oferecem prazer, criando uma sujeição no tempo às obrigações assumidas. Quando o equilíbrio destas contratações se quebra e o consumidor perde a capacidade de fazer frente às suas obrigações vencidas e vincendas, comprometendo para isso recursos garantidores do 'mínimo existencial', aí já está instaurado o superendividamento.
8Com a proteção do destaque patrimonial garantido pela figura da pessoa jurídica fundada em contrato de sociedade ou instituída unipessoalmente, assim como as previsões da recuperação empresarial e falência, que se estendem também para os empresários enquanto pessoas físicas. já os devedores em geral conhecem a proteção do bem de família e do mínimo necessário para a subsistência.
9O consumo abarca tanto bens e serviços vitais quanto supérfluos. O endividamento que compromete a capacidade futura de prover o próprio mínimo existencial é que se considera o grande problema.
10Vide a crise econômica – dita dos subprimes – desencadeada inicialmente nos EUA em função das especulações de alto risco e da falta de regulamentação a elas.
11A exclusão social está na base do cometimento de delitos contra o patrimônio e até mesmo contra pessoas (furtos, roubos, latrocínios, sequestros, etc.), situação esta bem conhecida de todos os povos latino-americanos.
12Liv. vII, 19: "... non eadem domini quae militiae fortuna erat plebi Romanae. Nam etsi unciario faenore facto levata usura erat, sorte ipsa obruebantur inopes nexumque inibant; eo nec patricios ambo consules neque comitiorum curam admittebat". Não tão favorável quanto à militar era a situação interna da plebe. Apesar de aliviados dos juros pelo limite do fenus unciario, os plebeus seguiam oprimidos pelo peso do principal e acabavam caindo em sujeição aos credores, por isso a plebe [tomada por seus problemas] não se importava que ambos os cônsules fossem patrícios, nem tinha interesse pelas assembleias ou pela vida pública.
13Liv. vII, 16.
14Livio, em vII, 16, 1, fala de uma 'lei' "não apreciada pelos patrícios" (Haud aeque laeta patribus...). Portanto, presume-se que não tenha recebido a autorictas patrum necessária para ter status de lei válida para todo o povo.
15Rotondi, G. Leges Publicae Populi Romani. Milano, 1912, p. 99.
16Tito Lívio, nascido em Patavium (Pádova), em 59 a.C., foi o autor da obra intitulada 'História de Roma' – Ab urbe condita libri, escrita em 27 a.C. E composta de 142 livros, dos quais apenas 35 remanescentes. Entre suas fontes estavam os anais romanos (que remontam ao costume dos pontífices máximos de anotarem em uma tábua branca – colocada frente à sua casa – todos os acontecimentos públicos de interesse ou de grande porte, como guerras, eclipses, inundações, fatos inerentes a relações com povos estrangeiros e a vida política interna) e o gênero que ele instaura realiza a fusão do método dos annales (narrativas sobre fatos precedentes ao autor) ao das historiae (narrativas sobre fatos contemporâneos), cf. a introdução de F. Solinas ao primeiro volume da Storia di Roma (I-III), a cura di Guido Vitali, em classici Greci e latini, bolonha, 198810, pp. 13-15. Apesar de ser uma fonte secundária, rendeu ao seu autor o reconhecimento como o 'grande historiador de Roma', cf. A. Guarino, L'esegesi delle fonti del diritto romano, napoli, 1982, pp. 345-346. na narrativa sob análise, proveniente do sétimo livro, Lívio faz expressa menção ao fato de os anais serem unânimes em referir os nomes dos cinco cidadãos nomeados mensarii, o que reforça a percepção que devemos estar realmente diante de um fato dificilmente contestável em sua historicidade.
17LIV. VII, 21, [5]: Inclinatis semel in concordiam animis novi consules fenebrem quoque rem, quae destinere una animos videbatur, levare adgressi solutionem alieni aeris in publicam curam verterunt quinqueviris creatis quos mensarios ab dispensatione pecuniae appellarunt. [6] Meriti aequitate curaque sunt, ut per omnium annalium monumenta celebres nominibus essent; fuere autem C. Duilius, P. Decius Mus, M. Papirius, Q. Publilius et T. Aemilius. [7] Qui rem difficillimam tractatu et plerumque parti utrique, semper certe alteri gravem cum alia moderatione tum impendio magis publico quam iactura sustinuerunt. [8] Tarda enim nomina et impeditiora inertia debitorum quam facultatibus aut aerarium mensis cum aere foro positis dissolvit, ut populo prius caveretur, aut aestimatio aequis rerum pretiis liberavit, ut non modo sine iniuria sed etiam sine querimoniis partis utriusque exhausta vis ingens aeri alieni sit.
18LIV. VI. 11. 9: "Qui non egestatem modo atque ignominiam minentur, sed nervo ac vinculis corpus liberum terrient" / O que [os débitos] não só conduzia a ignomínia e à miséria, mas também às penas corporais e ao aprisionamento do corpo, terrível ameaça para um cidadão livre (trad. minha).
19Nomeadamente o nexum e a sponsio, aquele, um mecanismo imediato de sujeição, a segunda, uma tipologia que, em chegando à fase de execução, desembocaria na addictio (aprisionamento do corpo para oferecimento à alienação em três dias de mercado, onde a falta de resgate autorizava a morte e até mesmo a secção do corpo entre os credores). Em ambos os casos, as consequências finais do inadimplemento revelam-se gravíssimas de serem suportadas por um cidadão livre. Mas apesar de a sponsio ser uma tipologia já bem difundida desde as xII Tábuas (Gai, Iv, 17: "Per iudicis postulationem agebatur si qua de re ut ita ageretur lex iussisset, sicuti lex xii tabularum de eo quod ex stipulatione petitur), gerando propriamente um crédito ao invés de uma sujeição imediata, é o nexum -enquanto relação concreta de garantia de uma dívida pela instituição de um estado de sujeição direta e imediata da pessoa do devedor (até a nexi iliberatio pela mancipatio per aes et libram em caso de adimplemento ou a manutenção do estado de sujeição na hipótese contrária) -a modalidade relacionada com a problemática do aes alienum que comparece nas fontes até meados do Iv séc. a.C , cf. Liv.II, 23 e II, 27, principalmente a parte final do fragmento de vARRO, De Lingua Latina, 7, 105: 'Nexum' Manilius scribit omne quod per libram et aes geritur, in quo sint mancipia. Mucius, quae per aes et libram fiant, ut obligentur, praeter quam mancipio dentur. Hoc verius esse ipsum verbum ostendit, de quo qu<a>erit; nam id es<t>, quod obligatur per libram neque suum fit, inde nexum dictum. Liber qui suas operas in servitutem <dedit> pro pecunia quam debebat, dum solveret, nexus vocatur, ut ab aere obaeratus. Hoc C. Poetelio Libone Visolo dictatore sublatum ne fieret, et omnes qui bonam copiam iurarunt, ne essent nexi, dissoluti. [Nexum: Manilio escreve que se refere a todos os atos per aes et libram, compreendida a mancipatio. Múcio, a todos os atos que se fazem para obrigar por aes et libram, excluída a mancipatio. O que é mais verdadeiro demonstra-o o próprio verbo que aqui se trata; isto é, que o que se obriga pela pesagem com a balança não se faz seu, por isso é dito nexum, o homem livre que prestava obras em servidão como pagamento de uma dívida de dinheiro, era chamado nexus, como endividado provém de aere. E foi somente esta situação que o ditador C. Poetelio Libone Visolo eliminou, e todos os que deram garantia com juramento de seus bens (futuros?) foram liberados da condição de nexi)]. Se por um lado o nexum sujeitava o cidadão a outro colocando-o em situação equiparada à servidão (deixando-o ao alvedrio do senhor), por outro lado a dívida gerada por uma sponsio, caso viesse a ser executada, poderia levar até à morte. Neste sentido, as consequências do nexum deveriam ser até mais leves que as da addictio fundada na sponsio, mas a realidade mostrava que ficar ao arbítrio de um senhor poderia ser bem pior, haja vista que não se tem relatos de efetiva morte por addictio, ao passo que há relatos de situações impensáveis de afronta à dignidade do nexus.
20LIV. VII, [21, 8]: ... aut aerarium mensis cum aere foro positis dissolvit, ut populo prius caveretur, aut aestimatio aequis rerum pretiis liberavit, ut non modo sine iniuria sed etiam sine querimoniis partis utriusque exhausta vis ingens aeri alieni sit. / ou o erário os pagava [os débitos] em dinheiro através de bancos instituídos no fórum, desde que se prestasse caução pública, ou eram extintos com os bens avaliados a um preço equitativo (trad. Livre).
21LIV. VII, 28, 9, narra a aplicação de multas edilícias aos usurários no ano de 344 a.C., 8 anos após a medida datada de 352 a.C.
22Do direito romano, em relação ao qual possuímos riqueza de fontes, tiramos um panorama evolutivo preciso para exemplificar isso. Os esquemas do ius atinentes à tutela do crédito (aes alienum) caracterizam-se sempre pela tutela da parte mais débil da relação. na fase pré-cívica da sociedade romana tal era o credor, e por isso tais esquemas se mostram geneticamente conformados à afirmação e tutela da vontade formalmente expressa como produtora de obrigação. De fato, nexum e sponsio são esquemas reforçadores dos vínculos sociais para a tutela daquele que, de possuidor efetivo de um bem passa à condição de mero titular de uma expectativa de reavê-lo, ao final de um determinado prazo. Esta realidade traduz-se nitidamente na estrutura do nexum, onde a expectativa do crédito é substituída por uma garantia concreta que recai sobre o próprio corpo do devedor, cf. M. Talamanca, Obbligazioni (Diritto romano), em Enciclopedia del diritto, XXIX, 1979, p. 6, nt. 35. Abusos desta tutela geraram a situação inversa, na qual o credor passou a ser senhor do devedor e o papel de mais débil da relação transferiu-se para o devedor. desde então, mecanismos de ruptura dos esquemas originários do ius foram sendo excogitados e a lex enquanto iussum Populi, foi o instrumento utilizado para – senão alterar todo o sentido de uma estrutura negocial consolidada na base dos mores – impor medidas desestimuladoras das práticas indesejadas. Assim, com esquemas tão arraigados que sequer são afetados diretamente pela lex, os efeitos desta devem ser indiretos, como a aplicação de uma pena (na forma de multa), realidade que espelha nitidamente toda a intrincada e difícil relação entre autonomia privada e lex. A evolução dos mecanismos do ius para a tutela do crédito em Roma nunca conseguiu superar totalmente a sua conformação genética.
23A comissão, instituída em 10 de novembro de 2010, entregou o anteprojeto de atualização do código de defesa do consumidor em 14 de março de 2012. Presidida pelo ministro do STJ, Herman Benjamin, é composta pelas professoras e doutoras em direito Ada Pellegrini Grino ver (uma das principais autoras da Lei de Ação Civil Pública e copresidente da comissão responsável pelo anteprojeto do CDC original) e Claudia Lima Marques (atual responsável pela redação do CDC-modelo das Américas), além do promotor de justiça do distrito Federal, leonardo bessa (especialista em serviços financeiros) e roberto Pfeiffer (diretor do Procon-SP e ex-conselheiro do conselho Administrativo de defesa econômica – Cade), cf.: [http://www.senado.gov.br/senado/presidencia/detalha_noticia.asp?data=14/03/2012&codigo=107504&tipo=12].
24Cf. as justificativas do projeto de lei, as regras de transparência sobre a publicidade de crédito visam justamente garantir que "a publicidade não oculte os ônus da contratação a crédito", vedando, por exemplo, menção a crédito 'sem juros', 'gratuito' e outras fórmulas equivalentes".
25Nomeadamente em caso de ter havido suporte do fornecedor do produto ou serviço para a preparação do contrato de crédito, prestação do serviço de crédito no local do fornecimento do produto ou serviço, quando o contrato menciona o produto ou serviço, especialmente quando o bem servir de garantia.
26"Entende-se por superendividamento o comprometimento de mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas, excluído o financiamento para a aquisição de casa para a moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para liquidação do total do passivo".
27"DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO".
"Art. 104-A A requerimento do consumidor superendividado pessoa física, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, visando à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores, em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservado o mínimo existencial.
§ 1.º entende-se por superendividamento o comprometimento de mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas, excluído o financiamento para a aquisição de casa para a moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para liquidação do total do passivo.
§ 2.º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora.
§ 3.º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida, tendo eficácia de título executivo e força de coisa julgada. § 4.º Constará do plano de pagamento:
I -referência quanto à suspensão ou extinção das ações judiciais em curso;
II -data a partir da qual será providenciada exclusão do consumidor de bancos de dados e cadastros de inadimplentes; III -condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento. § 5.º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importa em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de dois anos, contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação."
28Um dos três pilares da luta de classes da sociedade romana republicana, juntamente com as questões agrária e da capacidade política ativa.
29O art. 422 do Código Civil brasileiro destaca que: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé". A dimensão positiva da boa-fé objetiva é a que importa aqui, haja vista que impõe a ambos os contraentes a mútua colaboração e convergência de esforços para que o contrato se encerre com o adimplemento da obrigação. Esta mesma boa-fé rege as obrigações de consumo residualmente, enquanto regra geral, e diretamente, cf. a regra especial dos arts. 4.º, III e 51, Iv do CDC.
30A problemática que envolve o contraste entre as exigências de fluidez e certeza do direito já foi levantada por E. Cortés, Fluidez y certeza delderecho¿Hacia um sistema aberto de fuentes? em [http://www.iij.ucr.ac.cr/archivos/publicaciones/congresos/Comgreso%20Internacional%20de%20Derecho%20Civil%20y%20Romano%20UNAM%202005/Fluidez%20y%20certeza%20del%20Derecho.%20Hacia%20un%20sistema%20abierto%20de%20fuentes.pdf].