As novas estruturas geográficas da economia-mundo capitalista e o papel dos BRICS: um olhar a partir do brasil*

Las nuevas estructuras geográficas de la economía-mundo capitalista y el papel de los BRICS: una visión desde Brasil

The New Geographical Structures of the Capitalist World-Economy and the Role of the BRICS: a View from Brazil

Alexandre de Freitas Barbosa
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/UPS)
PhD en Economía, Universidad de Campinas (UNICAMP)
afbarbisa@usp.br

Ângela Cristina Tepassê
Universidade Paulista (UNIP)
MSc en economía política, PUC-SP
angelatepasse@hotmail.com

*Recibido: 1 de julio de 2014 / Aceptado: 4 de agosto de 2014

Para citar este artículo
Freitas Barbosa, A. e Tepassê, A. C. (2014). As Novas Estruturas Geográficas da Economia-Mundo Capitalista e o Papel dos BRICS: Um Olhar a partir do Brasil. OASIS, 19, pp. 21-51.


Resumo

Este texto desenvolve um arsenal teórico alternativo ao convencional, com o intuito de empreender uma compreensão da nova economia-mundo capitalista e da sua correspondente divisão internacional do trabalho. No atual contexto, processa-se uma alteração das relações entre centro, semi-periferia e periferia, engendrando novas clivagens intra-Sul e intra-Norte. O termo BRICS procura ser interpretado a partir dessas categorias. Tais países comportariam diferentes variedades de capitalismo, capazes de engendrar novos recursos de poder, atuando conjuntamente em termos geopolíticos num contexto de crise hegemônica. Se, em termos econômicos, suas relações possuem pouca densidade - à exceção da China com os demais países -, uma ação reformista vem sendo arquitetada com mais ênfase no período recente, por parte dos líderes dos BRICS no āmbito das organizações multilaterais e do G-20. Enfim, entender a dimensão destes desafios, do ponto de vista da política externa brasileira, é a proposta deste texto.

Palavras-chave: BRICS, economia-mundo capitalista, crise hegemônica, G-20, relações centro-periferia.


Resumen

Este texto desarrolla un marco teórico alternativo al convencional de la nueva economía-mundo capitalista y de la respectiva división del trabajo. En el actual contexto se da un cambio de las relaciones entre centro, semiperiferia y periferia que origina nuevos matices intrasur e intranorte. Se busca interpretar el término BRICS a partir de estas categorías. Estos países abarcarían diferentes variedades de capitalismo capaces de originar nuevos recursos de poder, actuando conjuntamente en términos geopolíticos en un contexto de crisis hegemónica. Si, en términos económicos, sus relaciones tienen poca intensidad –a excepción de China con los demás países–, se está orquestrando una reforma, sobre todo en el periodo reciente, por parte de los líderes de los BRICS en el ámbito de organizaciones multilaterales y de los líderes del G-20. En suma, comprender la dimensión de estos retos, desde el punto de vista de la política exterior brasileña, es la propuesta de este texto.

Palabras clave: BRICS, economía-mundo capitalista, crisis hegemónica, G-20, relaciones centro-periferia.


Abstract

This paper presents an alternative theoretical framework in order to understand the new nature of the capitalist world-economy and its corresponding international division of labor. It studies the meaning of BRICS by examining the once-held belief that the world was divided by a center, semi-periphery and periphery; it analyses the newly established divisions of intra-South and intra-North. These countries operate under various forms of capitalism, thus creating new power relations that work collectively from a geopolitical standpoint. Despite weak economic ties, with the exception of China, leaders of the BRICS are attempting to promote a reform within multilateral organizations and the G-20. The objective of this paper is to shed light on such challenges to this new strategy facing these countries, particularly from the perspective of Brazil’s foreign policy.

Key words: BRICS, capitalist world-economy, hegemony crisis, G-20, center-periphery relations.


Introdução

O ponto de partida do presente texto é o seguinte: a complexidade da nova economia-mundo capitalista, especialmente depois da ascensão chinesa, não cabe mais na estreita camisa-de-força imposta pelo conceito anódino de globalização. Neste sentido, na primeira parte do texto, procuramos recuperar o referencial teórico de Braudel, Wallerstein e Arrighi, juntamente com as contribuições de Prebisch e Furtado.

Na segunda parte, procedemos a uma reinterpretação do conceito de BRICS, diferenciando seus aspectos econômicos e geopolíticos, o que exige um distanciamento crítico em relação à formulação desenvolvida por Jim O’Neill e os economistas do Goldman Sachs, responsáveis pela sua cunhagem. Se esboça um panorama esquemático sobre estas quatro economiaso, assim como se ressalta o potencial desta nova coalizão geopolítica no sentido de reformar as instituições multilaterais e gestar uma nova superestrutura do poder global.

Na terceira parte, com base numa análise dos fluxos de comércio do Brasil com os demais países BRICS, este grupo apresenta-se mais como coalizão política com potencial para redefinir a superestrutura da nova economia-mundo capitalista, e não como um bloco econômico. As relações econômicas do Brasil com os BRICS, à exceção da China, não possuem densidade. Isso vale também para índia, África do Sul e Rússia, os quais são diferentemente impactados pela China, ao mesmo tempo em que se apoiam nos seus acordos de integração regional visando a adquirir maior projeção internacional.

Esta tríplice estrutura procura dar conta do objetivo central do texto, qual seja, apontar para o fato de que a economia convencional –geralmente apoiada na “metáfora da globalização”–, não percebe a reconfiguração geográfica das estruturas de acumulação de capital na economia-mundo capitalista, especialmente a partir da crise de 2008. Esta reconfiguração traz consigo uma alteração da importância relativa das posições estruturais – centro, semi-periferia e periferia –da “economia global”, engendrando novos processos endógenos de acumulação, para além dos centros dinâmicos tradicionais – Estados Unidos e União Européia –, ainda que a eles interligados.

O caso paradigmático é a China, especialmente a sua economia dinâmica concentrada no leste do país, onde se percebe uma transformação produtiva rumo aos setores mais intensivos em tecnologia. Os demais países dos BRICS, diferentemente afetados pela China, compõem uma nova semi-periferia industrializada e dinâmica em alguns setores, capaz de promover relações complexas entre Estado, capital privado e empresas transnacionais. Logram se apoiar ainda em mercado internos e regionais potencialmente amplos, porém sem o mesmo poder transformador em escala global.

Ao contrário do propalado pelos formuladores do acrônimo e por boa parte da mídia internacional, o que une os países do bloco é a tentativa de aumentar o seu poder de barganha global, aproveitando-se da crise hegemônica que deixa a nova economia-mundo capitalista sem uma gestão minimamente coerente. Dessa forma, os BRICS – que vieram ao mundo enquanto categoria econômica– podem se destacar como nova coalizão capaz de alterar a geopolítica global, a depender da forma como soltam seus interesses, ora convergentes, ora divergentes, e de como logram influenciar as decisões das potências tradicionais.

A Economia-mundo capitalista: Revisitando um conceito, recuperando seu sentido

O conceito de globalização, apesar de continuar vivo e servir de referência para líderes políticos e textos acadêmicos, não dá mais conta da complexidade do quadro econômico e geopolítico inaugurado durante a primeira década do século XXI, especialmente a partir da crise de 2008, quando os países do Atlântico Norte se mostraram profundamente afetados pela recessão seguida de baixas taxas de crescimento do pib global.

A transformação das estruturas econômicas e sociais dos vários espaços da economia-mundo capitalista inicia-se nos anos noventa, acelerando-se na década passada. A crise de 2008, que ainda hoje se faz sentir nas economias centrais, é apenas um dos sintomas desta mudança mais ampla –cujo epicentro origina-se na China, irradiando-se para o resto do mundo e sofrendo reações em cadeia– caracterizada por uma reorganização da divisão internacional do trabalho.

Vale ressaltar que o “processo de globalização” –caracterizado pela possibilidade de desterritorialização da produção, mas não apenas– acabou sendo ofuscado pelo “discurso da globalização”, segundo o qual todas as economias deveriam se curvar aos ditames do mercado em busca de um ideal abstrato de competitividade (Hobsbawm, 2000, pp. 7273, 78). De fato, durante os vinte anos que separam a queda do Muro de Berlim da quebra do Lehman Brothers, o mundo foi acometido pelo que Stiglitz (2010, p. 219) chama de ascensão e queda do “fundamentalismo de mercado”, o qual coincidiu com o curto período de “triunfalismo norte-americano”.

A versão mais recente desta ideologia está presente na obra de Thomas Friedman (2006, pp. 9-11, 15 e 21), que defende um mundo de múltiplas interconexões horizontais, desprovido de hierarquias e das “zonas de silêncio” onde prevalece a desintegração com relação à economia global. Recheada de exemplos do mundo empresarial, a obra defende uma “globalização 3.0”, ancorada nos indivíduos capazes de competir globalmente, desde que sejam criativos e aproveitem as oportunidades fornecidas pela plataforma do mundo plano. Em poucas palavras, “o trabalho é feito onde ele pode sê-lo de maneira mais efetiva e eficiente”, já que “o trabalho e o capital foram libertados” em benefício da competitividade.

Por sua vez, a “globalização 1.0” (1500 a 1800) dependia dos países e dos seus músculos produtivos; enquanto “a globalização 2.0” (1800 a 2000) referia-se às corporações multinacionais. Agora viveríamos num mundo cada vez mais integrado onde o campo do jogo foi aplainado, permitindo acesso a todos. Os exemplos prediletos do autor são as várias Shenzhens e Bangalores, além das novas Londres e Nova Iorque, que concentram as atividades intensivas em conhecimento. Enfim, um misto de auto-ajuda e de histórias de sucesso que não capturam a reorganização hierárquica das relações econômicas, dos fluxos de informações e das estruturas de poder.

Apesar de ter tido sua primeira edição publicada em 2005, este livro filia-se à corrente “ultra-globalista” de interpretação, que, segundo Martell (2007, pp. 173-179, 183, 185-187), emergiu nos anos 80 e 90. Embora se achar marcada por certo economicismo, esta corrente aposta também nas transformações culturais e políticas que levariam supostamente à homogeneização dos padrões de consumo e ao fim do Estado-Nação.

Em oposição, ao longo dos anos noventa, os teóricos “céticos” dariam o troco, mostrando os limites da “globalização”, além dos antecedentes históricos de um processo de internacionalização, ainda não plenamente global. Sua inspiração partia da manutenção do papel do Estado-Nação, reforçando a desigualdade de poder.

Martell defende, entretanto, uma terceira visão, “transformacionalista”, que reconhece a novidade da atual onda de “globalização”, especialmente nos seus aspectos qualitativos, mas que levaria a uma maior diversificação geográfica e enraizamento social (novas combinações entre o local e o global). Ao invés de prever simplesmente “mais globalização” no futuro, o cenário parece profundamente complexo, dependendo das novas formas de atuação dos Estados-Nação, das empresas multinacionais e do papel da nova sociedade civil global. Apesar de conceber a “globalização” como a nova força diretora do processo histórico, não se configura, no entender desta corrente, a emergência de sistema global único capaz de integrar todas as sociedades e nem tampouco um processo de convergência global (Martell, 2007, pp. 183, 185-187).

Seguindo a mesma linha, Dicken (1998, pp. 3-7, 12-13) aponta para a existência de “forças globalizantes em ação”, mas que não são suficientes para engendrar uma “economia mundial plenamente globalizada”. Diferencia o autor os processos de internacionalização –que envolvem a simples extensão de atividades econômicas para além das fronteiras nacionais– da globalização, que vai além, pois “integra funcionalmente estas atividades dispersas”. A crescente interconectividade acelera a complexidade geográfica –pois as escalas local, nacional e supranacional se articulam de maneira desigual–, e aguça a volatilidade por meio da constante mudança dos fluxos econômicos e de informações, gerando novas hierarquias, que afetam por sua vez a distribuição de poder.

Quebrando o mito da corporação transnacional deslocalizada ou global, o autor reforça a complexidade do processo ao apontar o nexo triangular que envolve relações empresa-empresa, Estado-Estado e empresa-Estado, com distintas configurações que dependem do setor econômico em questão e do poder de barganha estatal das várias nações (Dicken, 1998, pp. 10, 193-199, 243-245).

De alguma forma, esta é a mesma perspectiva de Castells. Também distanciando-se do discurso ultra-globalista –e recusando os conceitos convencionais de “sociedade pósindustrial” ou “pós-capitalista”–, o sociólogo espanhol parte do pressuposto de que o modo de produção capitalista se reestrutura sob um novo modo de desenvolvimento, o informacionalismo. Na cola deste processo, emerge uma nova estrutura social oriunda da reorganização do espaço global (Castells, 2000, pp. 32-36).

Apesar da falta de precisão de alguns conceitos utilizados, Castells distancia-se do discurso laudatório da globalização como processo que leva ao fim da geografia. Nas suas palavras, “a economia global não é planetária”. Se os seus efeitos afetam as possibilidades de inserção de todos os lugares, “sua operação e estrutura reais dizem respeito a segmentos econômicos, países e regiões, em proporções que variam conforme a posição particular de um país ou região na divisão internacional do trabalho”. Trata-se, enfim, de uma “geometria extraordinariamente variável que tende a desintegrar a geografia econômica e histórica” (Castells, 2000, pp. 120 e 123).

Partindo da hipótese de que “o espaço organiza o tempo na sociedade em rede”, Castells (2000, pp. 403-404) contrapõe uma nova lógica espacial, o “espaço de fluxos”, à lógica historicamente enraizada na experiência comum, o “espaço dos lugares”. Se o autor acena para uma relação dialética entre as duas lógicas –entre a “rede” e o “ser”, conforme a sua terminologia–, mais que uma superação, o que desponta no seu horizonte analítico é o avanço irreversível do espaço dos fluxos. Neste contexto, hierarquias sócio-espaciais reais e simbólicas se interpenetram, permitindo a emergência de um espaço relativamente segregado ao longo das linhas conectoras do espaço de fluxos.

Esta nova hierarquia de fluxos e lugares, assim como a “nova ordem internacional” de Kagan (2009, pp. 11-14, 28) –que reinsere os novos nacionalismos emergentes num contexto global em que a geoeconomia vai cedendo espaço para um retorno da geopolítica– , podem ser interpretadas à luz da reflexão teórica braudeliana.

O que segue é um relato bastante sintético de dois conceitos operacionais do historiador francês Fernand Braudel: economia-mundo e capitalismo. Acreditamos que estes possam ser úteis para a compreensão das múltiplas estruturas que compõem o que hoje se chama, de modo simplista, de economia global, à qual geralmente se chega a partir da simples agregação de variáveis econômicas nacionais.

Braudel (1996a, pp. 8-9), no terceiro volume da sua trilogia, empreende um esforço metodológico inaudito. Face à impossibilidade de “contar” a história completa do mundo –pois se defrontaria com um “rio sem margens”–, opta por destrinchar “um tempo vivido nas dimensões do mundo”. Um tempo que se não abarca “a totalidade da história dos homens”, define as possibilidades dos vários espaços que nele cohabitam, mesmo naquelas “zonas de silêncio”, alheias à sua presença articuladora. Quer nosso historiador explicar o que fez a Europa saltar à frente das demais civilizações, no sentido do capitalismo.

Para tanto, ele mobiliza o conceito de economia-mundo. Se o espaço põe em causa todas as realidades da história, a economia, por sua maior amplitude, fornece “o ritmo material do mundo”, empurrando ou sendo travada pelas demais realidades sociais. Ao contrário da economia mundial que engloba toda a produção, a economia-mundo é apenas um fragmento do universo, relativamente autônomo, que se basta a si próprio. Possui certa organicidade e coerência, funcionando como a camada superior da vida econômica, muitas vezes transcendendo o limite dos impérios (Braudel, 1996a, pp. 12-14).

Não nos interessa o seu recorte das civilizações antigas e suas respectivas economias-mundos, mas antes os traços comuns. Toda economia-mundo possui regras tendenciais: um limite geográfico, um centro onde já desponta, desde cedo, um “capitalismo” dominante e um espaço hierarquizado entre estas áreas polarizadas, zonas secundárias razoavelmente desenvolvidas e enormes margens exteriores ou periféricas (Braudel, 1996a, pp. 16-30, 34). O quadro é bem mais complexo, pois existe, no entender do historiador francês, um escalonamento –ou melhor, hierarquias– tanto nos centros, como nas áreas periféricas, especialmente nos seus pontos de conexão com a economia-mundo.

Braudel não se limita ao terreno econômico. Ao contrário, ele mostra como o Estado possui um papel estratégico, as formas sociais assumem geografias diferenciais e a cultura atua como o “ancião da história”, liberando forças onde a sociedade não consegue, e restringindo o alcance aparentemente ilimitado dos mercados (1996a, pp. 35, 40, 54).

Entretanto, ele parece sugerir que a partir do século XVIII, a primazia econômica tende a gerar desigualdades, não mais circunscritas a uma divisão do trabalho no seio das várias economias-mundo, ampliando-se para uma escala ainda maior, ou seja, na escala do mundo (1996a, p. 37), crescentemente envolvido por uma única economia-mundo capitalista, tal como aponta Wallerstein (1979, p. 27), situando-a, ao menos na sua configuração decisiva, no século XIX, a partir de uma centralidade européia.

Não focaremos aqui o processo por meio do qual a civilização européia e sua economia-mundo assumem a dianteira, integrando as demais no seu espaço de atuação ampliado. A análise de Braudel justapõe fatores econômicos, políticos e culturais, no intuito de perceber a excepcionalidade européia, a partir de uma perspectiva não-eurocêntrica.

Podemos inclusive dizer que o conhecimento de outras civilizações que enfeixam economias-mundo próprias é o que habilita Braudel a compreender a história do capitalismo na Europa na sua especificidade. Fornece ao historiador o distanciamento necessário para situar o universal em sua particularidade.

Do contrário, ele não poderia sentenciar que, por exemplo, até o século XVIII, pelo menos, “a China é a demonstração perfeita de que uma superestrutura capitalista não se instala, ipso facto, a partir de uma economia de ritmo animado e de tudo que ela implica. São necessários outros fatores” (Braudel, 1996b, p. 535).

Estes outros fatores nos remetem ao esquema metodológico de Braudel, desenvolvido de modo a abarcar a complexa realidade econômica, composta por três pilares: o capitalismo, a economia de mercado e a zona de auto-consumo.

Para o historiador francês, nem o “modo de produção industrial”, e tampouco a relação salarial, são as particularidades essenciais e indispensáveis do capitalismo. Este seria caracterizado antes como “o lugar do investimento e da alta taxa de produção de capital” (Braudel, 1996b, pp. 197 e 199-200). Ou seja, ao invés de um sistema com uma dinâmica própria e uma relação de classe plenamente configurada, como concebeu Marx, o capitalismo aparece como um lugar ou um degrau no topo da hierarquia econômica.

Indo direto ao ponto, Braudel (1996b, p. 197) define o capitalismo como a “zona do contramercado”, onde o monopólio campeia, enfim onde predomina “o reino da esperteza e do direito do mais forte”. Esta afirmação é poderosa, pois o capitalismo ao invés de depender da livre iniciativa, se aninha justamente onde se encontra a interseção entre o Estado e o mercado, restringindo-o, para potencialmente dinamizá-lo.

Num degrau abaixo, encontra-se a “zona mais representativa da economia de mercado”, responsável pelas ligações mais constantes entre os agentes econômicos e, por certo, automatismo ligando oferta, procura e preços. Neste lugar, vicejam a concorrência e as inovações utilizadas como formas de obter maiores fatias do mercado. Escavando um pouco mais, podemos encontrar, segundo Braudel, um enorme andar térreo da vida material, a zona do inframercado, “onde o mercado lança suas raízes, mas sem o prender integralmente”. Aqui predomina “o signo obcecante da autosuficiência” (Braudel, 1996b, pp. 7 e 197).

Neste sentido, o capitalismo aparece como uma constante da Europa, desde a Idade Média. Inicialmente, teria vivido enquistado, não se aventurando a conquistar a sociedade inteira. Acumulando capital em terminados setores –mais propriamente na esfera da circulação, onde “se sentia verdadeiramente em casa”– sem avançar pela economia de mercado da época. Caracterizando-se mais pela diferença com relação a “um não-capitalismo de proporções imensas”. Esquecer a “topografia antiga do capitalismo”, para dizer que este apenas aparece quando penetra na esfera da produção –“quando está em casa alheia”–, seria contar apenas parte da história (Braudel, 1996b, pp. 200, 207, 216).

Vejamos como Braudel navega no universo criado por Marx, tentando superá-lo, por meio do estudo da história. Discute a teoria, desconfiando do rigoroso e, por vezes, limitador esquema de reprodução do capital do pensador alemão. Preocupa-se antes com os espaços de reprodução do capital, variáveis histórica e geograficamente. Poderíamos até sugerir que ao voltar o capital a residir, ainda que não de maneira prioritária, mas de maneira sistêmica na esfera financeira ao final do século XX, Braudel estaria “dando o troco” a Marx e às interpretações marxistas contemporâneas que enxergam um “regime de acumulação financeirizado” (Chesnais, 2005, pp. 42-43) e, desta forma, passam por cima da crescente complexidade da economia-mundo capitalista.

Portanto, segundo a perspectiva braudeliana, “não há uma história simples e linear do desenvolvimento dos mercados” (Braudel, 1996b, p. 12). Mais importante ainda, o avanço de uma economia de mercado não tem por que espontaneamente engendrar o capitalismo.

Isto teria acontecido na Europa, em virtude seja do caráter vibrante de sua economia de mercado, seja da função libertadora do mercado mundial, comandado pelo capitalismo aí já predominante do século XIX, seja pela cumplicidade de segmentos sociais –a burguesia, especialmente– acionando de maneira privilegiada a máquina estatal (Braudel, 1996b, pp. 535-536; Braudel, 1985, pp. 66-67).

Em síntese, as posições relativas do capitalismo e da economia de mercado, além de sua interação mais complexa, fariam com que a Europa do século XIX –comparativamente às demais economias-mundo, crescentemente desarticuladas, transformando-se paulatinamente em apêndices do capitalismo europeu e, depois, mundial– se desdobrasse numa máquina de acumulação de capital crescente (Braudel, 1985, pp. 39 e 89).

Se o capitalismo se localiza no centro de cada economia-mundo, ele apenas se autonomiza e ganha desenvoltura, a partir de uma interação simbiótica com a economia de mercado, gestando pela primeira vez, sob o comando britânico, uma “economia nacional”, ou seja, “um espaço político transformado pelo Estado, em razão das necessidades e inovações da vida material”. Cria-se, então, “um espaço econômico, coerente e unificado, no qual as atividades podem se conjugar numa mesma direção”, ampliando o seu alcance numa escala planetária (Braudel, 1985, pp. 99, 103-104, 113). Rompe-se agora com a primazia das economias sob comando urbano, e das várias economias-mundo paralelas, incapazes, apesar de sua desenvoltura, de ampliar o seu alcance para assimilar o conjunto do universo (Braudel, 1985, p. 107).

Apesar de sugerido no seu esquema metodológico, o qual se faz acompanhar de uma interpretação histórica peculiar –Braudel (1985, pp. 97, 99, 111) ressalta como a preponderância econômica inglesa traz no seu bojo a ruptura de um processo multissecular, engendrando uma verdadeira economia mundial–, ele não chega a lançar o conceito de economia-mundo capitalista.

Quem o faz seguindo o seu rastro é Wallerstein. Por meio deste conceito, este autor abarca a expansão da economia-mundo européia pelo globo no século XIX, vinculando os recém-independentes países latino-americanos, agora sem a intermediação ibérica, e incorporando parcelas expressivas dos continentes asiático e africano à periferia do novo sistema, agora que os “impérios-mundo” foram esquartejados e os “mini-sistemas” perderam sua autonomia. Criam-se novas posições estruturais –centro, semi-periferia e periferia– na nova escala desta economia-mundo capitalista, as quais abrigam estruturas de classes particulares e correspondentes ao seu papel no sistema mais amplo. A complexidade da estrutura de poder impede, por sua vez, a emergência de um novo império (Wallerstein, 1979, pp. 27-32).

A principal limitação do esquema analítico do sociólogo norte-americano está em encarar o mecanismo do desenvolvimento econômico, no âmbito do capitalismo, como meramente quantitativo, oriundo da ampliação das relações de troca. Ele mesmo pontifica: o capitalismo é um modo de produção global, ou seja, “de produção para obtenção de lucro no mercado”, que não exige necessariamente a mercantilização da força de trabalho, saltando desta forma para fora do escopo analítico de Marx (Wallerstein, 1979, pp. 16-17).

Ao contrário, para Brenner (1977, pp. 31-33), o capitalismo implica uma mudança qualitativa, acionada por meio da inovação, a qual acarreta ganhos de produtividade e o barateamento dos produtos. Este processo, por sua vez, exige uma configuração de classe específica, ou seja, a generalização das relações capitalistas de produção. Ora, no entender de Brenner, mesmo sem alterar as relações de produção, um país poderia se conectar à economia-mundo capitalista, mantendo a sua estrutura de classe, sem deixar inteiramente para o mercado a responsabilidade para a subsistência de seus trabalhadores e consumidores. É o que acontece em boa parte da periferia.

Como ficamos então? A solução para este dilema nos é fornecida parcialmente por Arrighi, a partir de um diálogo entre as contribuições de Braudel e Marx.

Ora, se Braudel aponta para o ecletismo do capital, que se apresenta sobre várias formas de reprodução, onde as expansões financeiras funcionam como sintoma da maturidade do processo de acumulação, Marx descortina o padrão de acumulação especificamente capitalista, por meio da expansão material, crescentemente intensiva em tecnologia, que leva à concentração de capital e de poder.

A fusão de ambos os enfoques leva aos “ciclos sistêmicos de acumulação” –possuindo duração de cerca de um século e funcionando a partir da alternância de formas de organização de produção e de centros hegemônicos (leia-se ciclo genovês, holandês, britânico e norte-americano)– que configuram “padrões diversos de repetição e evolução do capitalismo histórico como sistema mundial”, articulados, por sua vez, às disputas de poder inter-estatal. Períodos de mudanças contínuas (expansão material) se fazem suceder por mudanças descontínuas (expansão financeira), quando então se presencia a rearticulação hegemônica sob a liderança de blocos de novos agentes governamentais e empresariais (Arrighi, 1996, pp. 1-15).

Concomitantemente, em cada ciclo, reconstrói-se um regime de acumulação capitalista em escala mundial, que é como entendemos a economia-mundo capitalista nos seus vários momentos, com várias hierarquias e configurações espaciais. Esta síntese aproveita as contribuições de Braudel e Wallerstein, agora ressignificadas pelas categorias arrighianas.

Não se trata simplesmente de um modo de produção capitalista mundial, com várias relações de produção nos distintos espaços geográficos, como sugere Wallerstein (1979, p. 79). Talvez, e quando muito, de um modo de produção capitalista vitaminado a partir dos centros reestruturados e que se lança sobre ou é internalizado pelas semi-periferias e, em menor medida, pelas periferias, cujo papel no reordenamento do sistema-mundo se apresenta sob novas formas em cada ciclo sistêmico.

Os autores acima citados tendem a ver as periferias a partir da sua abordagem totalizante, às vezes perdendo de vista as suas peculiaridades. Os teóricos latino-americanos –da CEPAL e da “teoria da dependência”– fizeram o movimento inverso, na tentativa de capturar a desigualdade congênita do desenvolvimento global, a partir das relações entre o capitalismo central e o periférico, sempre cambiantes (Prebisch, 1981, pp. 26-30).

Neste sentido, Furtado (1974, pp. 77-78. 81-87), por exemplo, articula dinamicamente os conceitos de subdesenvolvimento e dependência, a partir da experiência latino-americana. Por subdesenvolvimento, entende “a forma de vinculação de estruturas sócio-econômicas nas áreas onde o sistema de divisão internacional do trabalho permitiu que o produto líquido crescesse mediante simples rearranjos no uso da força de trabalho disponível”. Mais adiante, o autor complexifica o seu aparato analítico, de modo a compreender o “subdesenvolvimento industrializado” da experiência brasileira, que gera descontinuidades no aparato produtivo e uma heterogeneidade tecnológica que não moderniza inteiramente as estruturas econômicas, fazendo com que a heterogeneidade social se consolide.

No seu entender, o fenômeno da dependência é mais amplo do que o subdesenvolvimento. Toda economia subdesenvolvida é dependente, mas nem sempre a dependência criou as formas sociais que caracterizam um país subdesenvolvido (Furtado, 1974, p. 87). Como resultado, os padrões de consumo dos países centrais não são generalizáveis a não ser para uma camada restrita das populações dos países periféricos (pp. 91-93).

Ou seja, o desenvolvimento da economia-mundo capitalista manifesta-se de maneira diferenciada no tempo e no espaço, gerando constelações de forças sociais heterogêneas, especialmente na periferia, que podem atuar no sentido de aprofundar ou atenuar a dependência. Entretanto, nada indica que a reiteração do subdesenvolvimento e da dependência seja “uma necessidade, uma conseqüência inelutável do modo capitalista de produção” (Furtado, 2000, pp. 28-29, 75).

A partir da síntese acima, procuramos resgatar um arsenal metodológico capaz de destrinchar a complexidade das estruturas da nova economia-mundo capitalista e a sua correspondente divisão internacional do trabalho em processo de consolidação.

Como a China contribui para acionar este conjunto de transformações? É o que procuramos discorrer de maneira sintética em seguida, mobilizando as categorias lapidadas acima e procurando, ao mesmo tempo, alargar o seu potencial analítico.

Partimos da hipótese de que a China passa a ocupar papel de destaque na economia-mundo capitalista, servindo de laboratório privilegiado para se compreender como “o capitalismo e a economia de mercado coexistem, se interpenetram, sem nunca se confundirem” (Braudel, 1996b, p. 26), por vezes inclusive se conflitando.

Existe, portanto, uma “dialética oscilante entre a economia de mercado que se desenvolve quase por si, espontaneamente, e uma economia predominante, que coroa estas atividades, que as orienta e as têm à sua mercê” (Braudel, 1996b, pp. 28-29), assimilando-se, deslocando-as ou simplesmente reprimindo-as. Isto é o que não se percebe nas visões estáticas que partem de uma economia global plenamente integrada, ou que opõem as economias ditas emergentes às economias centrais em crise.

Neste sentido, poderia o capitalismo enquanto lugar privilegiado da acumulação, circunscrito aos níveis superiores da sociedade e da economia, interagir, de maneira diferenciada no espaço, com as economias de mercado em volta, redirecionando-as e se aproveitando delas, ao mesmo tempo em que engendra no-vas hierarquias na economia-mundo capitalista, como parece sugerir Arrighi, na sua análise do “modelo chinês”? (2007, pp. 7-8, 261-267).

Em síntese, capitalismo, sim, por sua conexão global, retirando dinamismo de uma economia de mercado vibrante, mas cerceada pelo poder do Estado, que escolhe seus vencedores, os quais devem se mostrar competitivos dentro e fora da China. A mão-de-obra barata faz parte do arranjo, mas não explica tudo. Existem, de fato, na China, vários “regimes de trabalho” encaixados nas suas dinâmicas de acumulação específicas.

A título de ilustração, é como se parte do centro, da semi-periferia e da periferia da eco-nomia-mundo capitalista, tivessem sido transplantadas para o território chinês, afetando as demais parcelas do centro, da semi-periferia e da periferia da economia-mundo capitalista, as quais respondem a estes estímulos/pressões em cadeia.

Se, desta forma, a China logrou expandir sua economia de mercado e instaurar um lugar minimamente autônomo para a acumulação, à la Braudel, por meio da conexão seletiva com a economia-mundo capitalista, conferindo novo ritmo e sentido à sua transformação econômica. A continuidade da expansão da economia chinesa –e das várias economias “internas” que ela engloba–, passa a depender agora de um conjunto de decisões tomadas não apenas pelo seu Estado comandado por um Partido Comunista extemporâneo –que procura gerenciar conflitos sociais crescentes–, mas também pelas estruturas reconfiguradas do poder econômico global, do qual ela participa de maneira ativa, mas não possui a palavra final.

Chegamos, pois, ao fim do quebra-cabeça teórico. A sua construção leva a um conjunto de hipóteses complementares, e ainda preliminares, apresentadas em seguida.

A economia-mundo capitalista experimentou com a ascensão chinesa, uma extroversão dos centros dinâmicos de acumulação capitalista para além do Atlântico Norte. A costa leste chinesa compõe –junto com as economias dominantes, européia e norte-americana, apesar da crise recente– os espaços centrais de acumulação de capital, poder e tecnologia.

Algumas economias como Brasil, índia, Rússia, África do Sul e outras do Sudeste Asiático, caracterizadas como economias semiperiféricas, lograram ascender na divisão internacional de trabalho (algumas mais e outras menos favorecidas pela ascensão chinesa), em virtude da sua competitividade externa em alguns setores e da dimensão dos seus mercados internos, que abrigam economias de mercado (no sentido braudeliano) redinamizadas por mecanismos endógenos de acumulação de capital.

A tradicional periferia localizada nos países latino-americanos desindustrializados, no sul da Ásia e em boa parte da África, volta a apresentar elevados níveis de crescimento, em grande medida puxada pela demanda de commodities chinesa, mas ressentindo-se da estreiteza das economias de mercado circundantes, o que trava o potencial endógeno de acumulação de capital.

Em síntese, a nova economia-mundo capitalista engloba diversas regiões que interagem entre si por meio de uma divisão internacional do trabalho não plenamente consolidada.

Em primeiro lugar, configura-se um centro dinâmico expandido, com maior homogeneidade tecnológica e dos padrões de consumo, que engendra novas periferias, em virtude da crise resultante da excessiva financeirização –como no caso do sul da Europa e de certas regiões dos Estados Unidos–, abrindo espaço para um novo quadro de dependências relativas (vide Grécia com relação à Alemanha).

Em segundo lugar, a China continua tendo que lidar com a polarização desenvolvimento/subdesenvolvimento ao longo do seu vasto território. O desenvolvimento do Leste –que trouxe um avanço espetacular das forças produtivas– não levou a uma redução das disparidades sociais e regionais, antes pelo contrário.

Em terceiro lugar, nas regiões semi-periféricas, esta polarização também existe, mas a diferença essencial reside em que os núcleos dinâmicos de acumulação de capital, apesar de levarem a uma dinamização dos seus mercados internos, não conseguem, à maneira chinesa, promover uma reconversão produtiva no sentido dos setores intensivos em capital e tecnologia a ponto de causarem uma pressão competitiva nas demais áreas centrais. Neste contexto, a dependência é no máximo atenuada, ainda que não deixe de se afirmar enquanto traço estrutural.

Em quarto lugar, a ampla periferia, reposicionada pela ascensão chinesa, vê acirrar-se a sua dependência estrutural, necessitando de mercados para seus poucos produtos e de fluxos de capitais provenientes não apenas das três sedes dinâmicas da economia-mundo capitalista, mas agora também das economias semi-periféricas. Às típicas clivagens Norte-Sul, percebe-se um novo tipo de clivagem Sul-Sul. Trata-se, aqui, de um cenário de múltiplas dependências.

O quadro apresenta-se, sobremaneira, complexo, já que estas estruturas de acumulação –mais ou menos autônomas– repercutem sobre as demais, acarretando efeitos em cadeia, de difícil elucidação. A crise hegemônica presenciada pelas tradicionais potências ocidentais abre, entretanto, novas possibilidades de reorganização da estrutura de poder –no âmbito do G-20, da OMC, do FMI, do Banco Mundial, das Cúpulas Climáticas–, capazes de engendrar, ao menos em tese, uma economia-mundo capitalista de múltiplos pólos e hierarquias menos rígidas. É, pois, no plano da estrutura de poder global que serão definidos os contornos decisivos da economia-mundo capitalista em processo de consolidação, apesar e por conta da crise de longo prazo vivenciada pelas economias do Atlântico Norte.

BRICS: Uma Intepretação Alternativa

Existe uma confusão conceitual em torno da categoria BRICS. Alguns a vêem como um bloco econômico, enquanto outros como uma iniciativa geopolítica do Sul contra o Norte, fadada ao fracasso em virtude das profundas diferenças entre os seus membros.

Neste tópico, apresentaremos a visão pioneira desenvolvida por Jim O’Neill e os economistas do Goldman Sachs, para depois fazer uma crítica a tal enfoque, partindo da reconstrução teórica lançada na primeira parte deste texto.

Para tanto, apresentaremos alguns indicadores econômicos sobre os BRICS, ressalvando a sua posição peculiar na nova divisão internacional do trabalho, mas sempre tratando de diferenciar a China dos demais países. Ao final, discorremos sobre as potencialidades deste novo ator geopolítico, os BRICS, que atua como uma coalizão de países focada em algumas pautas específicas –onde logram estabelecer interesses comuns– num contexto de crise de hegemonia e reconfiguração da economia-mundo capitalista.

Em 2001, de maneira algo visionária, o economista Jim O’Neill (2011, p. 3) antecipou que os BRICS –Brasil, Rússia, índia e China– iriam responder por boa parte do crescimento da demanda global, em virtude de duas características básicas: o tamanho populacional e a existência de economias potencialmente dinâmicas. Esta tese foi submetida à prova durante a crise das economias do Atlântico Norte, entre os anos 2008-2009, as quais sofreriam um segundo mergulho em 2011-2012. Como se sabe, os BRICS, de distintas formas e com diversos ritmos, passaram pelo “teste da crise”, ainda que tenham experimentado uma desaceleração em termos de crescimento econômico a partir de 2012. Isto, por sua vez, compromete em alguma medida a tese de que tais países estariam “desvinculados” das economias do Atlântico Norte.

O modelo, que deu origem ao conceito dos BRICS, partia de três variáveis básicas: potencial de crescimento do emprego, do estoque de capital e de aceleração do progresso tecnológico, abrindo assim espaço para a redução da defasagem com os países do Norte. A sua simplicidade guarda alguma relação com as hipóteses de Rostow (1971, pp. 16-30), acerca das etapas do crescimento econômico. Haveria como que uma corrida entre nações, como pib dos BRICS ultrapassando o do G-6 em 2040 (Goldman Sachs, 2003, p. 4), em dólares correntes, estimativa depois revista para 2032 (Goldman Sachs, 2009, p. 3).

Além de passar por cima das relações complexas entre as economias de ambos os grupos –o Norte e o Sul Dinâmico1 – e de não considerar as necessárias transformações na estrutura de poder global, ainda indefinidas, em virtude do paulatino engessamento do G-20, criado, em 2008, no auge da crise, o “sucesso” destas economias tinha como inspiração uma avaliação normativa, já que tudo parecia depender da sua maior abertura, do investimento em educação, de políticas econômicas corretas e de instituições ditas eficientes (Goldman Sachs, 2003, p. 13).

Desta forma, a perspectiva por trás do conceito de BRICS de Jim O’Neill desconhece a existência das várias conexões estabelecidas entre os mercados e as instituições no âmbito do capitalismo. Ora, ao invés de uma única arquitetura institucional, a diversidade é inerente às sociedades capitalistas (Amable, 2005, pp. 12-18).

A dicotomia entre market economies e state-capitalism, revela-se limitada, além de eurocêntrica. Todo capitalismo seria State-led, ao passo que as market economies inexistem, a não ser como segmentos que participam de uma relação dialética com o capitalismo, de acordo com a leitura braudeliana.

No mesmo sentido, Boyer e Hollingsworth (1997, pp. 2-5), preferem apostar na coexistência global entre diversos sistemas sociais de produção comandados pelo mercado. Isto porque não existe completa globalização dos fatores de produção, nem concorrência perfeita nos mercados de produtos, além da resistência à transferência das modernas tecnologias e do papel de destaque assumido recentemente pelo Estado na regulação econômica, em diversas frentes e sob distintas formas.

Como conseqüência, a matriz econômica que informa o conceito de BRICS, em virtude de sua estreiteza analítica, não permite abarcar a extrema complexidade das estruturas econômicas e sociais que caracterizam estes países. Ao justapor à China aos demais países, perde-se de vista que esta nação-continente leva a uma reconfiguração das estruturas espaciais de acumulação capitalista no próprio centro, na semi-periferia dinamizada, da qual fazem parte Brasil, Rússia e índia e outras nações, além de reintegrar de maneira subordinada os países da periferia tradicional.

Paralelamente, joga-se para debaixo do tapete a heterogeneidade das estruturas econômicas e sociais destas variedades de capitalismo, que possuem mercados de trabalho profundamente segmentados, e que tendem a ampliar a desigualdade junto com a ativação das forças produtivas capitalistas.

Nos dos gráficos abaixo, procuramos apresentar indicadores econômicos que permitem chancelar nossa visão alternativa. Em primeiro lugar, apresentamos a participação dos países do Norte desenvolvido, dos BRICS, da China e do restante da periferia no pib mundial no período recente. Percebe-se uma queda de participação das áreas centrais tradicionais, acompanhada de uma elevação nas regiões da “antiga periferia”. Esta inflexão seria ainda mais pronunciada quando se utilizássemos os dados do PIB a partir da paridade de poder de compra (figura 1).

Em segundo lugar, procuramos a partir de um indicador limitado –participação das várias regiões nas exportações dos produtos de alta e média tecnologia– apontar para as no-vas hierarquias do poder econômico global. A expansão da China neste indicador não deixa margem a dúvidas. A participação européia segue elevada, apesar de superestimada por considerar as exportações intra-UE. Mesmo a queda da participação dos Estados Unidos não deve ofuscar o fato de que estes setores de fronteira tecnológica dependem mais do mercado interno do que das exportações no caso norte-americano. Paralelamente, a participação dos demais BRICS –incluída a África do Sul, mas sem a China– permanece bastante reduzida (figura 2).

Finalmente, vale ressaltar que a apesar da limitação do conceito de BRICS em termos econômicos, a sua cunhagem foi apropriada pelos países que compõem a sua sigla no intuito de lhe conferir um sentido geopolítico. Estes países perceberam o potencial de criação de uma nova coalizão num contexto de crise de hegemonia ao nível global. Ainda que não fizessem a crítica do seu significado econômico, passaram a utilizá-lo de modo a reforçar os interesses potencialmente comuns.

Tal reconversão geopolítica dos BRICS partiu do esforço conjunto dos chanceleres brasileiro, Celso Amorim, e russo, Sergei Lavrov, os quais articularam uma primeira reunião ao nível de Ministros de Relações Exteriores dos quatro países, realizada na cidade de Ecaterimburgo, em maio de 2008 (Reis, 2012, p. 36).

A partir de 2009, cinco encontros de Cúpula –envolvendo os chefes de Estado– tiveram lugar nos países que conformam a sigla. No ano de 2013, a África do Sul, integrada ao grupo a partir da Cúpula de 2011, sediou a reunião. O ingresso deste país também revela o caráter crescentemente geopolítico deste grupo, tendo em vista a menor dimensão da sua economia, em contraste com seu papel de relevo nos assuntos globais. Tal incorporação deve-se à existência, desde 2003, do IBAS, arranjo cooperativo envolvendo índia, Brasil e África do Sul, que reflete os anseios de potências regionais emergentes com interesses na reforma do Conselho de Segurança da ONU.

O BRICS enquanto coalizão política caracteriza-se pela baixa institucionalidade. Isto porque o seu intuito é o de atuar de maneira coordenada no G-20 dos Líderes e nos órgãos multilaterais existentes. Trata-se de criar uma agenda comum –onde houver sintonia de interesses– para a reforma do sistema geopolítico global num contexto de crise hegemônica2, acelerada a partir de 2008.

Neste sentido, as visões maniqueístas que apontam, seja para um revisionismo anti-status quo, seja para uma virtual cooptação destes países pelas potências ocidentais, mostramse inadequadas (Soares de Lima, 2012, pp. 176-177).

O objetivo destes países, num primeiro momento, estava voltado à redução da assimetria existente entre as regras do sistema global e os recursos de poder por eles angariados, em especial pela China. Não à toa, boa parte de sua agenda era construída nos encontros paralelos ou antecedentes às Cúpulas do G-20, do Banco Mundial e do FMI, e em menor medida na OMC, para acertar possíveis convergências e “furar” o bloqueio dos países do antigo G-7. Entretanto, em muitos temas, os países dos BRICS tendem a apresentar posturas divergentes entre si, ou então mais afinadas com alguns países do Norte.

Mais recentemente, a agenda intra-BRICS começou a caminhar para além da simples cooperação via extensão para todo o grupo de acordos bilaterais mantidos entre alguns dos seus membros. A ideia –prestes a ser ratificada em julho de 2014, quando do próximo encontro do grupo no Brasil– de lançamento de um “Banco de Desenvolvimento dos BRICS”, com aporte de capital inicial de us$ 50 bilhões, para financiar projetos de infra-estrutura em países emergentes, representa um movimento no sentido de atuação comum, e mais independente, no plano global. No mesmo encontro, será também aprovado o “Arranjo Contingente de Reservas”, com um aporte de us$ 100 bilhões, tendo por objetivo injetar liquidez em momentos de crises do balanço de pagamentos dos países integrantes (Leo, 2014). Estas iniciativas revelam que a tentativa de mudar o sistema internacional “a partir de dentro” (leiase por meio de G-20 dos Líderes) foi encarada como frustrada ou, ao menos, insuficiente, pela coalizão.

Interessa também ressaltar que, para além das diferenças existentes entre os países do bloco em todos os quesitos possíveis –insistentemente alardeadas pelos países desenvolvidos e por boa parte da imprensa ocidental–, os BRICS lograram articular uma visão comum de mundo, como se depreende da leitura da Declaração de Delhi (29 de março, 2012).

O documento apresenta o novo grupo como portador de uma “agenda para o diálogo e a cooperação”. Estes países conseguem articular uma posição conjunta em uma multiplicidade de temas e agendas, que vão desde a regulação financeira internacional, o sistema multilateral de comércio, o desenvolvimento sustentável, passando pelos conflitos do Oriente Médio e do Norte da África.

Não obstante, a dependência dos BRICS de forjar acordos com as potências ocidentais tradicionais sobre os múltiplos temas da agenda global torna difícil qualquer prognóstico sobre o futuro desta coalizão. Como conseqüência, a paralisia do G-20 dos Líderes poderia ocasionar à própria paralisa dos BRICS, algo que esta coalizão parece levar em conta. Assim talvez se explique a criação do “Banco Mundial” e do “FMI” dos BRICS, de modo a oferecer alternativas, ou ao menos, mostrar a sua capacidade para insistir na gestão multipolar da nova economia-mundo capitalista, de modo a superar a crise hegemônica vivida pelas potências tradicionais.

Essas iniciativas comuns não são suficientes para assegurar o sucesso dessa nova coalizão. Isso depende do seu reconhecimento pelas potências do Atlântico Norte. Não menos importante, cabe lembrar que cada país dessa coalizão possui sua própria agenda externa e conexões diretas com as potências ocidentais, especialmente no caso das potências nucleares e com assento no Conselho de Segurança da ONU. Caso estas relações bilaterais prevaleçam sobre a coordenação de posições comuns, a coalizão corre risco de esgarçamento do seu poder de transformação da estrutura global de poder.

No caso brasileiro propriamente dito, a alcunha BRICS fornece uma espécie de hard power junto a outros países, algo que não lhe é conferido por sua posição econômica e por sua opção por abdicar de ser uma potência armamentista.

De qualquer forma, para a diplomacia brasileira, a opção por recuperar a sua identidade Sul3, a partir do Governo Lula, quando além da prioridade das relações com a América do Sul se forjou uma aproximação estratégica com os países da África, encontra seu coroamento com o apoio decisivo para a transformação dos BRICS em instância geopolítica privilegiada para a transformação das relações de poder no plano global.

Resta saber em que medida estas várias iniciativas se complementam e logram a instauração de uma política externa brasileira coerente e capaz de alterar as regras do jogo global, ao mesmo tempo em que fornecem condições para a emergência de um novo padrão de desenvolvimento, ancorado no dinamismo do mercado interno, mas sem deixar de aproveitar as vantagens potenciais da nova divisão internacional do trabalho.

O BRASIL e os BRICS na nova divisão Internacional do trabalho

A partir dos anos oitenta, a economia brasileira passou por um período de forte instabilidade, caracterizada pelo baixo crescimento e por ajustes estruturais profundos. Isso porque a crise da dívida externa deu lugar a desequilíbrios macroeconômicos. Neste contexto, ganhou força a crítica de fundo neoliberal ao modelo de desenvolvimento brasileiro ancorado na diversificação do mercado interno.

A abertura comercial brasileira começou antes do início dos anos noventa, concentrando-se inicialmente na diminuição das tarifárias médias e no fim de alguns regimes especiais de importação (Miranda, 2001). Há de se considerar também o efeito da duração da valorização cambial e do regime de câmbio fixo sobre a baixa competitividade das exportações. Juntos, esses efeitos determinaram os rumos das transformações produtivas e da inserção externa brasileira (Carneiro, 2002).

O saldo comercial tornou-se negativo após 1994, sendo os setores intensivos em tecnologia e capital crescentemente deficitários, enquanto o superávit concentrava-se nos segmentos intensivos em recursos naturais. No plano da abertura financeira, houve o aumento do passivo externo e da vulnerabilidade externa e deterioração da capacidade do país de resistir a ataques especulativos (Carneiro, 2002).

Ou seja, as políticas do chamado Consenso de Washington, ainda que implementadas à maneira brasileira, não foram capazes de gerar o crescimento esperado. Já no plano da política externa, o Brasil –à exceção da tentativa de fortalecimento dos mecanismos de integração regional– pautou-se pela adesão irrestrita aos regimes internacionais, algo que passa a ser questionado já no segundo governo Fernando Henrique Cardoso.

Desde a posse de Luís Inácio Lula da Silva, entretanto, a política externa brasileira passou por transformações no sentido de uma diversificação maior dos parceiros comerciais, ao mesmo tempo em que ampliava o seu foco para além dos objetivos diretamente econômicos. Este quadro foi favorecido pelo dinamismo da economia-mundo capitalista, que permitiu uma substantiva melhoria nos indicadores de vulnerabilidade externa do país.

Mais do que uma aproximação genérica maior com os países do Sul, priorizou-se a articulação regional que favorecesse o desenvolvimento do Brasil e dos vizinhos sul-americanos; a articulação trilateral com índia e África do Sul; e a capacidade de conferir “instrumentalidade prática ao conceito de BRICS”, a partir da atuação conjunta em fóruns multilaterais (Lima, 2010).

Na prática, esta reorganização das prioridades da política externa esteve vinculada a uma mudança na “geografia comercial”, segundo a terminologia utilizada pela diplomacia brasileira. Com a crescente ascensão chinesa e a crise nos países desenvolvidos, os BRICS, e principalmente a China, passaram a ter cada vez mais relevância no cenário mundial, reconfigurando as estruturas espaciais de acumulação capitalista. Entre 2001 e 2010, a participação dos Estados Unidos e da União Européia no comércio brasileiro caiu, enquanto a dos BRICS, mas especialmente da China, e demais países aumentou, conforme veremos adiante.

O crescimento desses países no comércio mundial deu-se em termos quantitativos, mas também qualitativos. Os setores intensivos em tecnologia diferenciada foram os que mais tiveram sua participação expandida nas exportações dos BRICS (figura 3). Entre 1996 e 2011, sua participação ampliou em duas vezes, enquanto as participações dos setores intensivos em recursos naturais e trabalho caíram.

Esta mudança deve-se principalmente à China, pois, se excluirmos esse país dos BRICS, a participação dos setores intensivos em recursos naturais ainda é de longe a maior, aproximadamente 60,0% do total –provavelmente direcionados para a própria China– e reproduzindo assim um padrão de comércio Norte-Sul intra-BRICS. A nova potência asiática atua, desta forma, como hub para os demais países, que ainda possuem frágeis relações econômicas entre si.

Como efeito da política brasileira de aproximação com o Sul e da ascensão da China no comércio mundial, a China passou de uma participação de 3,3% em 2001 para 15,6% em 2010 dentre os principais destinos das exportações brasileiras. A África subsaariana passou de 2,1% em 2001 para 2,5% em 2010, a América Latina aumentou de 17,7% em 2001 para 19,7% em 2010, enquanto a União Europeia teve a sua participação reduzida de 26,6% para 21,8% e os EUA de 24,7% para 9,7% (figura 4).

O mesmo aconteceu com as importações. Entre 2001 e 2010, a participação da China passou de 2,4% para 14,2%, a da África subsaariana de 3,7% para 4,1% enquanto a União Européia e os Estados Unidos tiveram suas participações reduzidas de 27,8% para 21,2% e de 23,5% para 15,1% respectivamente. Nes-se caso, a América Latina teve a participação reduzida de 16,3% para 14,3% (figura 5).

No que se refere às relações com a China, o Brasil passou a ser um importante fornecedor de commodities desse país e importador de produtos com cada vez mais conteúdo tecnológico incorporado.

Quanto às exportações brasileiras de manufaturados, os Estados Unidos e a União Europeia também perdem participação como principais destinos. Entre 2001 e 2010, a União Europeia passa de participação de 22,7% para 21,0% e os Estados Unidos de 29,3% para 10,8%.

Já a América Latina, a África subsaariana, BRICS e China, tiveram sua participação no total das compras de bens manufaturados provenientes do Brasil, expandidas. A América Latina passou de 20,6% para 25,9%, a África Subsaariana passou de 2,5% para 3,8%, a China de 1,6% para 4,2% e Rússia, índia e África do Sul, jutas, passaram de 3,6% para 5,4%.

Portanto, a América Latina ainda é um importante mercado para os produtos manufaturados brasileiros e vêm aumentando a sua importância. Entretanto, há uma diversificação dos parceiros no sentido de menor dependência dos Estados Unidos e da União Europeia para novos mercados como África como um todo e África do Sul, China, índia e Rússia.

As importações de manufaturas seguem o mesmo padrão das importações totais. A União Europeia tem queda de participação de 31,1% para 23,8% entre 2001 e 2010, assim como os Estados Unidos, cuja participação cai de 25,8% para 16,1%.

As participações da América Latina e da África subsaariana também têm queda, mas pequena, 13,1% para 12,5% e de 0,9% para 0,6% respectivamente. Isso porque a participação da China cresce muito, de 2,6% para 16,0%. Já Rússia, África do Sul e índia juntas têm sua participação elevada de 2,5% para 4,1%.

Entre Brasil e China, o padrão de comércio alterou-se de maneira radical nos últimos vinte anos. Em 1990, o Brasil exportava para a China mais manufaturas do que importava e tinha déficits em commodities. Essa relação já se apresenta invertida dez anos mais tarde e, vinte anos depois, as commodities são o guindaste do superávit comercial brasileiro. Trata-se de uma típica relação Norte-Sul, o que evidencia a posição central da China nas estruturas de acumulação da economia-mundo capitalista, como se desprende a figura 6.

O grande salto das exportações chinesas para o Brasil ocupa lacunas na estrutura produtiva geradas nas últimas décadas, especialmente em segmentos da indústria têxtil, de eletrônicos e de bens de capital. A maior parte da pauta de importações brasileiras da China é composta de bens de alta e média-alta tecnologia incorporada (figura 7).

Na pauta de exportações brasileiras para a China, os produtos dos setores de baixa, média-baixa e média-alta tecnologia perdem participação para os produtos não industrializados. Entre 1998 e 2011, a participação dos setores de baixa tecnologia caiu de 40,0% para 10,2%, enquanto a participação dos setores não industrializados aumentou a participação de 47,5% em 1998 para 83,9,2% em 2011 (figura 8). Os principais produtos exportados são minério de ferro, soja e petróleo.

Em suma, a China pode representar uma oportunidade para o Brasil por sustentar a demanda e os preços de bens primários, aliviando a restrição externa de muitos países da América Latina, e expandir a demanda de manufaturados desses países produtores de primários, o que pode ser aproveitado pelo Brasil, pois são os países beneficiados pelos preços dos primários, além de compradores tradicionais de manufaturados do gigante da América do Sul.

Entretanto, se a ascensão chinesa não tem se mostrado suficiente para levar a uma desindustrialização no Brasil, ela gera uma pressão competitiva em várias frentes, além de levar um enxugamento das cadeias produtivas industriais. Este processo, entretanto, não teve ainda a uma perda irreversível da complexidade do parque industrial brasileiro.

Ao contrário do verificado acima, as relações econômicas entre o Brasil e dos demais BRICS ainda se mostram bastante tímidas, algo que comprovaremos a partir dos indicadores de comércio.

Nas importações totais do Brasil, a China participa com 14,5%, a Rússia com 1,3%, a índia com 2,7% e a África do Sul com 0,4%. Já nas exportações totais, a participação da China é de 17,3%, da Rússia é de 1,6%, da índia é 1,3% e da África do Sul é de 0,7%, sempre para 2011 (figuras 9 e 10).

Vejamos agora as relações comerciais do Brasil com os demais BRICS em separado. No caso da índia, o padrão de comércio com o Brasil também se alterou em menos de vinte anos. Assim como no caso da China, em 1990, o Brasil exportava para a índia mais manufaturas do que importava e tinha superávit também em commodities. Em 2000, o Brasil passa a ser importador de manufaturas e exportador de commodities para a índia. Em 2011, o Brasil tem superávit de us$ 2,2 bilhões em commodities e déficit de us$ 5,1 bilhões em manufaturas (figura 11).

Ou seja, o padrão de comércio entre Brasil e índia segue um padrão parecido com o observado na relação entre Brasil e China. O Brasil exporta produtos básicos e importa produtos mais elaborados, com maior valor agregado e que geram mais encadeamentos produtivos. Nesse caso, o Brasil exporta petróleo cru e importa manufaturas de petróleo refinado.

Já a relação de comércio com a Rússia é um pouco diferente, pois o Brasil mantém superávit comercial tanto em commodities como em produtos da indústria de transformação (figura 12). Além disso, o saldo comercial da indústria é muito maior que o saldo comercial de produtos não industrializados. Entretanto, as manufaturas exportadas à Rússia não são de alto valor agregado.

Em 2011, do total da pauta de exportações, 44,1% foi de produtos do açúcar e 37,0% de carne processada e preservada e produtos da carne. Por outro lado, as importações brasileiras provenientes da Rússia, apesar do superávit em manufaturas, foram compostas de produtos com mais valor agregado. As manufaturas de fertilizantes e compostos de nitrogênio responderam por 63,8% das importações.

Ou seja, se para a China e para a índia a pauta de exportações brasileiras concentra-se em produtos não industrializados, para a Rússia, ao menos, as exportações concentram-se em manufaturas de baixa tecnologia (84,1% em 2011).

No caso da África do Sul, o Brasil também tem superávit comercial em manufaturas e commodities, sendo que, entre 1990 e 2011, o saldo de manufaturas cresceu 7,4 vezes e o de commodities passou de déficit para superávit (figura 13).

As importações brasileiras provenientes da África do Sul são aproximadamente 40,0% compostas de produtos de média-baixa tecnologia e 40,0% de média-alta. Os principais produtos são produtos manufaturados de metais preciosos e de base não-ferroso (20,8%), manufaturas de ferro e aço (13,8%), extração e mineração da hulha (13,4%) e manufaturas da indústria química (10,1%).

As exportações são principalmente das indústrias de média-alta e baixa tecnologia. Sendo que entre 1998 e 2011, a primeira perdeu participação e a segunda ganhou. A participação de média-alta tecnologia saiu de 58,3% em 1998 e passou para 45,2% em 2011 enquanto a de baixa tecnologia passou de 17,1% para 34,4%.

Portanto, as exportações do Brasil para a África do Sul são menos concentradas em poucos produtos e menos pautadas em produtos primários de baixa tecnologia do que no caso do comércio com a índia, situando-se a Rússia num patamar intermediário. Ainda assim, nos três casos mencionados, a participação no comércio brasileiro ainda é marginal, bastante diferente do que ocorre nas relações econômicas Brasil-China, que ocasionam um profundo processo de readaptação da indústria brasileira.

A título de síntese, pode se afirmar, por meio de uma breve análise das relações comerciais entre o Brasil e os demais BRICS, que este grupo não possui características de um bloco econômico. Á exceção da China que altera o perfil de inserção externa não apenas dos BRICS, mas de todo e qualquer país, não existe densidade em termos de fluxos comerciais entre os demais países, que, em grande medida, atuam como zonas da semi-periferia industrializada aproveitando-se do potencial de mercado oferecido por seus parceiros regionais.

Considerações finais

Este texto procurou apontar como os novos contornos da economia-mundo capitalista e da divisão internacional do trabalho correspondente –em grande medida relacionados com a ascensão da economia chinesa– acarretaram uma reconfiguração das estruturas espaciais de acumulação, com impactos diferenciados sobre as várias regiões do centro, da semi-periferia e da periferia.

Esta forma de abordar as novas hierarquias e polarizações que permeiam a “economia global” apoiou-se numa releitura das contribuições teóricas de autores como Braudel, Wallerstein, Arrighi, Prebisch e Furtado, com o objetivo de compreender as transformações estruturais que se iniciaram antes e, inclusive, se aceleraram depois da crise de 2008.

O cenário obtido é o de um centro dinâmico –ainda saindo da estagnação– composto pelas potências do Atlântico Norte, que desenvolvem uma relação de mútua dependência com um novo centro dinâmico do capitalismo, situado no Leste da China. Enquanto a China passa a canalizar para dentro do seu território parcela crescente da produção e do consumo, os tradicionais centros dinâmicos ainda se caracterizam pela geração de inovação tecnológica. Estes três polos também destacam-se pela vultosa concentração da acumulação de capital, que no caso dos países do Atlântico Norte foi “desperdiçada” pela crise financeira, enquanto a China segue avançando rumo a setores mais avançados tecnologicamente.

Os demais países BRICS destacam-se pelo dinamismo dos seus mercados internos e pelo dinamismo em algumas rubricas de exortações. Conseguem estabelecer novos mecanismos de acumulação de capital, que resvalam para além de suas fronteiras, mas não conseguem como a China gerar uma transformação sistêmica de suas estruturas produtivas.

Desta forma, os BRICS fazem sentido mais como coalizão política que almeja alterar a estrutura geopolítica global, onde o poder ainda se concentra nas potências tradicionais. Os integrantes dos BRICS possuem diversos recursos de poder e níveis também distintos de influência econômica global. Mas podem assumir, conjuntamente, um papel de destaque na redefinição das prioridades tanto dos organismos multilaterais como do G-20 dos líderes.

Em termos econômicos, o que se percebe é que a China atua como o principal hub nas relações econômicas intra-BRICS, haja vista que as relações bilaterais entre os seus demais integrantes se caracterizam pela baixa densidade, o que se comprovou a partir de uma análise dos fluxos de comércio brasileiro com os demais países do grupo. Portanto, a noção genérica de que os BRICS seriam os growth countries perde de vista as variedades de capitalismo desenvolvidas no âmbito de seus países, além das várias formas de interação dos mesmos com os países tanto do Sul como do Norte.

O desafio dos BRICS –atualmente em processo de criação de seu próprio “FMI” e “Banco Mundial”– está em se mostrar como ator capaz de pressionar pela reforma das entidades multilaterais, contando com apoio das potências tradicionais –que necessitam de uma recuperação global que não virá exclusivamente de seus mercados– ao mesmo tempo em que minando as várias divergências existentes entre os seus países-membros.

Para a política externa brasileira, esta atuação conjunta pode contribuir para atenuar alguns elementos que agravam a vulnerabilidade externa da sua economia –“guerra cambial” e ausência de reformas financeiras globais–, criando assim as condições para o maior desenvolvimento do mercado interno, junto com uma perspectiva de integração regional de mais longo prazo, sem descuidar das parcerias produtivas com as empresas provenientes dos novos e velhos centros dinâmicos da economia-mundo capitalista reconfigurada.

Em termos especificamente econômicos, o que tem prevalecido é uma contínua pressão competitiva chinesa sobre a indústria de transformação brasileira no mercado interno, a qual se mostra diferenciada nos vários setores, e já desloca inclusive as exportações brasileiras de produtos manufaturados especialmente nos países da América do Sul. Os crescentes déficits comerciais em bens industriais do Brasil com a China, mas também com os Estados Unidos e a União Européia, mais do que compensam os superávits obtidos com América do Sul e a África.

Neste sentido, uma reorganização ofensiva da estrutura produtiva brasileira pode e deve estar alicerçada no seu mercado interno e no mercado regional, ao mesmo tempo em que procure enfrentar o desafio competitivo dos países do Norte desenvolvido e da China. O perfil de exportações centrado em commodities para a China e para bens industrializados concentrados no restante da periferia não se mostra sustentável no longo prazo.

Trata-se, portanto, de um desafio não apenas da política externa, mas das políticas de desenvolvimento, industriais, tecnológicas, de financiamento e de expansão da infra-estrutura, que dinamizem as cadeias produtivas nacionais, inclusive regionalizando-as, de modo a superar a pressão competitiva nos setores de maior valor agregado.

Em síntese, o Brasil pode ocupar um papel de destaque na nova geopolítica mundial, negociando novos regimes financeiros e de comércio, a partir da transformação do BRICS em ferramenta não apenas simbólica, mas eficaz no sentido de alteração das relações Norte-Sul. Trata-se de negociar de maneira mais soberana a sua participação na economia-mundo capitalista, ampliando os mecanismos de endogeneização da acumulação de capital. Esta é uma condição necessária –mas não suficiente– para que se possa instaurar no país um novo padrão de desenvolvimento voltado para a redução contínua e consistente dos níveis de desigualdade.


Notas

1 Sobre o conceito de “Sul dinâmico”, ver UNCTAD (2007).
2 O conceito de crise de hegemonia aqui adotado parte das reflexões de Arrighi (2007), inspirado pelas categorias gramscianas, analisadas no contexto específico da crise do ciclo sistêmico de acumulação comandado pelos Estados Unidos.
3 Lembremos que o país lançou uma política externa independente no início dos anos sessenta, recuperada na segunda metade dos anos setenta, e abandonada na década de os noventa (Barbosa, Biancalana e Narciso, 2009).

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