10.18601/16577558.n30.06

Regionalismo Sul-Americano e defesa: os impactos da inflexão na Unasul e no CDS

Regionalismo Sudamericano y defensa: los impactos de la inflexión en Unasur y el CDS

South American regionalism and defense: the impacts of the pivot in Unasur and the CDS

Artur Cruz Bertolucci*
João Victor da Motta Baptista**
Leonardo Dias de Paula***

* Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). (CNPq). Pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), São Paulo, (Brasil). [arturbertolucci83@gmail.com], [https://orcid.org/0000-0001-5696-531X].
** Mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é Assessor Executivo no Instituto Observatório Social (IOS). Integra o grupo de pesquisa Observatório do Regionalismo (vinculados à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo - REPRI), São Paulo, (Brasil). [joaovictor.dmb@hotmail.com], [https://orcid.org/0000-0002-5937-9647].
*** Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e redator para o Observatório Sul-americano de Defesa e Forças Armadas, São Paulo, (Brasil). [depauladiasleo@gmail.com], [https://orcid.org/0000-0003-1585-6269].

Recibido: 19 de marzo de 2019 / Modificado: 29 de abril de 2019 / Aceptado: 2 de mayo de 2019

Para citar este artículo:

Cruz Bertolucci, A.; Motta Baptista, J. V. da y Dias de Paula, L. (2019). Regionalismo sul-americano e Defesa: os impactos da inflexão na Unasul e no CDS. OASIS, 30, pp. 97-114. DOI: https://doi.org/10.18601/16577558.n30.06


RESUMO

O arrefecimento do diálogo intergovernmental nos espaços de concertação política da Unasul, e em específico em seu CDS, podem ser interpretados como um desafio às análises mais otimistas quanto às possibilidades de cooperação na América do Sul. No presente texto, analisamos o processo mais recente de esvaziamento do CDS da Unasul a partir do marco teórico dos estudos de integração regional e do instrumento analítico dos Complexos Regionais de Segurança. Argumentamos que o arranjo de cooperação regional instituído através da Unasul permanece volátil aos esforços e incentivos governamentais.

Palavras chave: regionalismo sul-americano, Unasul, defesa, segurança.


RESUMEN

El enfriamiento del diálogo intergubernamental en los espacios de concertación política de la Unasur, y en específico en su CDS, pueden ser interpretados como un desafío a los análisis más optimistas en cuanto a las posibilidades de cooperación en América del Sur. En el presente texto, analizamos el proceso más reciente de vaciamiento del CDS de la Unasur a partir del marco teórico de los estudios de integración regional y del instrumento analítico de los Complejos Regionales de Seguridad. Argumentamos que el arreglo de cooperación regional, instituido a través de la Unasur, permanece volátil a los esfuerzos e incentivos gubernamentales.

Palabras clave: regionalismo suramericano, Unasur, defensa, seguridad


ABSTRACT

The cooling of intergovernmental dialogue in the political spaces of Unasur, and specifically in its South American Defense Council (CDS), can be interpreted as a challenge to the most optimistic analyzes regarding the possibilities of cooperation in South America. In this text, we analyze the most recent process of emptying out the CDS from Unasur, through the theoretical framework of regional integration studies and the analytical instrument of the Regional Security Complexes. We argue that the regional cooperation arrangement established through Unasur remains volatile to governmental efforts and incentives.

Key words: South American regionalism, Unasur, defense, security.


INTRODUÇÃO

A constituição do Conselho de Defesa Sul-americano (CDS) no âmbito da União das Nações Sul-americanas (Unasul) pode ser interpretada como marco significativo para o aprofundamento das iniciativas de cooperação em temáticas de defesa e segurança internacional no espaço sul-americano. Em perspectiva mais ampla, observa-se que a inauguração do espaço de concertação política em temas tão sensíveis às unidades políticas esteve inserida em um processo longevo de intensificação das relações cooperativas, alicerçado em iniciativas que remontam à década de 1990.

Ao longo da década de 2000, a simultaneidade de governos nacionais interessados na agenda de cooperação na América do Sul implicou a expansão e o aprofundamento das iniciativas já existentes, assim como o lançamento de novos projetos para a integração sul-americana. É prudente notar, no entanto, que esse processo não permaneceu isento a divergências de Estados da região, assim como de suas comunidades domésticas. Com efeito, a partir da metade posterior da década de 2010, houve um arrefecimento dos esforços favoráveis à cooperação na região, que produziu um estado inercial dos arranjos regionais.

Nesse contexto, a Unasul e seu CDS foram impactados por uma redução significativa na participação dos Estados membros e a formação de impasses nos ambientes decisórios. A suspensão da participação de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru em abril de 2018 representa um obstáculo significativo à atividade do arranjo regional, e se relaciona com a redução no interesse pelo avanço de iniciativas de cooperação no espaço subcontinental. Em agravo, a adesão colombiana à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sob o status de sócio global, indicou uma divergência política significativa em relação aos propósitos iniciais do projeto.

No presente texto, propomo-nos a analisar o processo mais recente de esvaziamento do CDS da Unasul. Argumentamos que a conjuntura observada entre 2015 e 2018 revelou a fragilidade dos resultados acumulados por arranjos cooperativos na região, que permanecem suscetíveis à inclinação política e ideológica dos governos no subcontinente. Para tanto, a partir da análise de documentos relevantes ao tema e da bibliografia especializada na constituição regional dos problemas de segurança e na mobilização de arranjos regionais cooperativos, buscamos entender as características desse processo de esvaziamento da institucionalidade da Unasul.

Na seção inicial apresentamos uma discussão sobre as bases teóricas que orientam a investigação. Ao considerar a interdependência entre as dinâmicas de securitização dos Estados sul-americanos, é possível analisar as diferentes iniciativas de coordenação e cooperação em temas de defesa e segurança. Nesse sentido, exploramos as possibilidades de interpretação para as funções exercidas por arranjos regionais na construção do Complexo Regional de Segurança na América do Sul.

Em sequência, dispomo-nos a apresentar brevemente a miríade de arranjos regionais formulados ao longo das últimas décadas na América do Sul. Com o objetivo de compreender a conjuntura política regional que possibilitou o desenvolvimento de uma agenda política regional sobre segurança, defesa e investimentos em outras políticas públicas. Desta forma, apresentamos os movimentos do regionalismo sul-americano após o fim da Guerra Fria.

Por fim, discorremos sobre a constituição do CDS e os processos de deliberação e concertação política em seu espaço decisórios. Conquanto a criação do ambiente de cooperação em questões de defesa represente um avanço importante para a cooperação em assuntos demasiadamente sensíveis para as unidades políticas, assinalamos a fragilidade dos resultados acumulados pelo arranjo regional.

A INTERDEPENDÊNCIA DE DINÂMICAS DE SEGURANÇA NA AMÉRICA DO SUL

É adequado considerar que as dinâmicas de segurança de uma unidade política frequentemente estão interligadas ao contexto regional mais amplo, delineando conjuntos complexos de relações erigidas ao redor dos processos de securitização1 ou de-securitização localizados entre as fronteiras regionais (Buzan; Wæver, 2003, p. 44). Resultam da interconexão entre as dinâmicas securitárias, obstáculos em analisar individualmente as relações estabelecidas entre as unidades políticas e os pares internacionais ao redor desse eixo temático. Nesse sentido, o instrumento analítico dos Complexos Regionais de Segurança (CRS) permite observar as relações interligadas em aglomerados regionais. Muito embora a proposta de um quadro teórico para a análise da construção de agendas de segurança se estenda a dinâmicas nativas de outras temáticas, questões inerentes às políticas de defesa representam uma fonte importante para os estudos da interconexão dos processos de securitização (Buzan; Wæver; Wilde, 1998)2.

Uma tipologia de análise para os Complexos de Segurança pode ser delineada de acordo com a polaridade da distribuição de poder entre as unidades políticas que o constituem. Nesse sentido, um CRS pode ser caracterizado como "padrão", na ausência de um polo definido de poder, ou "centrado" (Fuccille; Rezende, 2013). Pode-se ainda propor categorizações de acordo com o polo predominante:

[…] os CRS centrados são de três formas: (1) unipolares, sendo o polo uma grande potência; (2) unipolares, sendo o polo uma superpotência; (3) centrados, mas integrados por instituições, e não por um poder regional. Os teóricos sugerem, contudo, uma opção extra, (4) categorizada assim porque não identificam nenhum CRS centrado desse tipo: quando há um crs centrado unipolar, mas a potência regional não é uma grande potência no nível global (Fucille; Rezende, 2013, p. 80).

A influência de potências internacionais nas dinâmicas regionais de segurança não pode ser desprezada. O fenômeno de penetração dos interesses de uma superpotência ou de uma grande potência localizada em outro CRS é observado na ocasião em que esses se alinham com os processos de securitização e os interesses de um Estado no interior do Estado em questão (Buzan; Wæver, 2003, p. 46). No caso sul-americano, a penetração de interesses estadunidenses foi amplamente registrada no curso da história e é adequado indicar sua preponderância contemporânea. Mais recentemente, no entanto, é prudente voltar as atenções também aos movimentos realizados por outras grandes potências no espaço sul-americano3.

Convém indicar que os CRS não demandam processos de cooperação técnica ou integração em outras agendas, tampouco a existência de espaços institucionais para o florescimento de relações cooperativas entre as unidades políticas. Com efeito, um CRS pode ser marcado pela prevalência de relações de rivalidade e um extenso marco de eventos de hostilidade entre as unidades constituintes. Os critérios para a constituição de um Complexo de Segurança distanciam-se, portanto, das comunidades de segurança definidas por Haas (2004).

Uma comunidade de segurança, em oposição, é caracterizada pela prevalência de relações estáveis em matérias de segurança, informadas por uma percepção de confiança e mesmo de convergência identitária entre suas unidades (Magalhães, 2012, p. 83). Nesse sentido, é plausível conceber a existência de comunidades de segurança em meio a um CRS. É possível caracterizar a formação de comunidades de segurança pelo objetivo de ampliar e sedimentar práticas formais ou informais de governança em temas de Defesa e Segurança (Flemes; Nolte; Wehner, 2011, p. 114). Outro fator relevante para a gestação de uma comunidade de segurança pode ser expresso pelo processo de alheamento de outros atores a partir da constituição de uma identidade específica aos componentes do arranjo de governança em temas de Defesa e Segurança (Flemes; Nolte; Wehner, 2011, p. 115).

Não se ignora a possibilidade de associar o quadro teórico imbuído na análise dos CRS para o estudo da edificação de arranjos regionais com institucionalização mais intensa.

Nesse sentido, pode ser instigante considerar as organizações regionais como vetor de conexão entre as dinâmicas unitárias de securitização e espaço para a concertação e a convergência em políticas de defesa. Debruçar-nos-emos sobre as iniciativas de arranjos regionais na seção seguinte, observando as possibilidades de ação conjunta e cooperativa em questões securitárias. Faz-se necessário discutir previamente uma caracterização generalista das dinâmicas de securitização no subcontinente sul-americano.

Sem prejuízo à descrição de um CRS sul-americano é prudente assinalar a manutenção de uma tendência à fragmentação em dois subcomplexos. Com efeito, observam-se dinâmicas substantivamente distintas em temas de segurança entre as unidades políticas localizadas no setor norte-andino e aquelas que compõem o Cone Sul. Buzan e Wæver (2003, p. 318, tradução nossa) argumentam que "a região tem sido coesa no âmbito das ideias e dos ideais, em que figuras simbólicas são assiduamente compartilhadas, enquanto no tocante aos interesses e às ações permanece fragmentária"4. A heterogeneidade entre as unidades políticas da América do Sul pode ser observada em relação às políticas de defesa, os quadros institucionais e as definições conceituais em torno das questões de defesa e segurança, assim como no padrão de emprego das Forças Armadas, na disponibilidade de capacidades materiais e nas relações estabelecidas com potências extra-regionais (Vaz; Fuccille; Rezende, 2017). Identifica-se a predominância de relações cooperativas estáveis entre os Estados do Cone Sul, enquanto o subcom-plexo norte-andino permanece marcado pela prevalência de dinâmicas conflitivas, em parte derivadas do processo de securitização do problema transnacional das drogas.

Apesar da heterogeneidade identificada entre os subcomplexos de segurança na América do Sul, é plausível indicar a função aglutinadora do Estado brasileiro. De acordo com Buzan e Wæver (2003, p. 332), o Estado brasileiro permanece central às dinâmicas securitárias do Cone Sul, mas exerce capacidade de irradiar interesses diretos ou indiretos sobre o subcomplexo norte-andino. Ao identificar uma polaridade distinta no contexto sul-americano no decorrer da década de 2000, Fuccille e Rezende (2013, p. 85) argumentam que o Estado brasileiro se tornou capaz de aglutinar as agendas de ambos os sub-complexos, diante de um contexto de maior autonomia em relação à potência global estadunidense. Como discutiremos adiante, é adequado assinalar a relevância do processo de cooperação instaurado no âmbito da Unasul, e centrado em seu Conselho de Defesa, para a aglutinação das pautas securitárias das duas regiões.

Contudo, faz-se imperioso notar um arrefecimento das relações cooperativas em arranjos de regionalismo e o recrudescimento de dissonâncias políticas entre as unidades políticas sul-americanas no decorrer da década de 2010. Nesse sentido, é possível identificar uma deficiência entre as demandas para a condução de um arranjo regional cooperativo em questões de defesa e segurança e o interesse político em incentivar e fornecer os recursos e capacidades necessárias para promover a cooperação (Vaz; Fuccille; Rezende, 2017, p. 2).

Nota-se que a redução nos esforços em prol de arranjos cooperativos demanda o esboço de uma explicação multicausal. O agravamento da crise política e econômica no Brasil reduziu a prioridade concedida à promoção de iniciativas de cooperação na região, implicando um decréscimo em sua capacidade de aglutinar as dinâmicas de segurança dos subcomplexos norte-andino e do Cone Sul. Simultaneamente, observa-se a ascensão de governos nacionais que também reduzem a relevância das agendas regionais na definição de prioridades para a condução das respectivas políticas externas. Não se ignora a agudização da crise política na Venezuela, interpretada pelos pares sul-americanos como um risco à estabilidade do subcontinente.

A seguir, recuperamos o amplo histórico de iniciativas para a construção de arranjos regionais na América do Sul. Identificamos a conformação de ênfases distintas, e por vezes paradoxais, entre diferentes processos de cooperação na esfera regional. Adiante, concentramos a análise na constituição da Unasul e em seu CDS, buscando identificar elementos relevantes ao estudo da conjuntura que se impõe sobre a cooperação regional em questões de segurança na América do Sul no decorrer da metade posterior da década de 2010.

BREVES NOTAS SOBRE O REGIONALISMO SUL-AMERICANO

Com o término da Guerra Fria, a defesa da livre iniciativa, aplicada aos planos econômico, social, político e cultural, sancionada por mudanças no ordenamento jurídico aliados a discursos sobre a paz, do pluralismo e do respeito à legalidade, trouxeram embutidos os argumentos que legitimaram a hegemonia estadunidense no período (Ayerbe, 2002). O contexto de redemocratização dos Estados latino-americanos, após as ditaduras civis-militares, potencializou a construção de novas iniciativas e debates acerca do regionalismo na América Latina. Aspectos econômicos e comerciais entraram na centralidade da agenda, na medida que a dissolução da União Soviética possibilitou ao neoliberalismo a hegemonia do sistema econômico a nível global.

Neste período, as inciativas e propostas de regionalização no subcontinente foram caracterizadas pelo modelo de regionalismo aberto, entendido como um processo de interdependência a nível regional, impulsionado por acordos preferenciais de integração e outras ações de liberalização e desregulação, com o argumento de ampliar a competitividade dos países da região para uma economia mais aberta e transparente com a formação de blocos econômicos (Cepal, 1994 apud Corazza, 2006). Esse modelo de regionalismo visa "[…] conciliar dois fenômenos: a crescente interdependência regional resultante dos acordos preferenciais e a tendência do mercado em promover a liberalização comercial" (Corazza, 2006, p. 146); ao passo que "[…] propõe uma liberalização ampla de mercado entre setores e países, objetivando reduzir os custos econômicos e a incerteza derivada de acordos contraditórios" (Aguiar, 2003, p. 24).

O Mercado Comum do Sul (Mercosul), o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) e a reorientação da Comunidade Andina de Nações (CAN) nos anos 1990 são expressões claras desse regionalismo posto em prática no Sistema Interamericano. O Merco-sul teve como meta, além da criação de uma área de livre-comércio, a "[…] constituição de um mercado comum, com tarifa externa comum e atuação conjunta entre os membros em negociações externas" (Mello, 2002, p. 38). De maneira similar, o Nafta, constituído em 1992, construiu um acordo para criação de uma área de livre comércio envolvendo Canadá, México e Estados Unidos, com objetivo facilitar as transações econômicas entre esses países e abolir as taxações sobre a circulação de mercadorias e produtos. Neste caso, a "[…] criação do Nafta ampliou a interdependência assimétrica entre os dois países e a amplitude das questões intermésticas5 na agenda com os Estados Unidos" (Lima, 2013, p. 174).

Por conseguinte, a virada do século elegeu sucessivos governos liderados por partidos de esquerda e centro-esquerda na América do Sul. Esse fenômeno herdou de uma década e meia de prevalência dos modelos de livre-mercado uma transformação nas dinâmicas de trabalho, território e de bem-estar que fragmentaram e desmobilizaram as bases sociais tradicionais destes partidos e movimentos; e, a partir do enxugamento do Estado, menores capacidades institucionais e limites às unidades políticas com menor capacidade de implementar políticas de desenvolvimento (Alegre, 2010).

Diante deste cenário os governos da região reorganizaram um modelo de desenvolvimento não conscrito pelos aspectos econômicos, mas que também fosse capaz de gerar inclusão social, devido aos altos índices de pobreza e de desigualdade social na região. No Brasil, esse período é sinalizado pelo desgaste do regionalismo aberto, com a inflexão da política externa do governo Fernando Henrique Cardoso, em seu segundo mandato, que passou a reconhecer as assimetrias da globalização (Mendonça Junior, 2014).

Dessa forma, reorientou-se a cooperação com os países da América do Sul, como conse-quência da busca por uma maior presença internacional, e de capacidade de influenciar nas regras e nas decisões que em um contexto de assimetrias tem capacidade de alterar aspectos internos (Vigevani et al., 2003). Essa inflexão foi marcada simbolicamente na realização da I Cúpula Sul-americana, também conhecida como Primeira Reunião dos Presidentes da América do Sul. Vizentini (2003) compreende esse processo como uma reação modesta ao lançamento do Plano Colômbia e a proposta de aceleração da ALCA. Nesta Cúpula, se propôs a construção de "[…] um projeto de integração econômico e político para toda a área sul-americana" (Valencia & Ruvalcaba, 2013, p. 71), com o lançamento das bases da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

A construção desse processo apresentou um giro importante com a eleição de Lula da Silva no Brasil e Nestor Kirchner na Argentina. Então, em 2004, na III Cúpula Sul-americana, em Cuzco, no Peru, houve a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA ou CSN), que seria sucedida pela Unasul. A agenda política da Unasul se pautou na formação de distintas iniciativas sub-regionais de cooperação que ampliou a importância da América do Sul como ator e espaço político.

Esse fenômeno de reorientação na concepção e propostas de regionalização pode ser chamado de regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico, com início no final dos anos 1990, com eleições como a de Chávez na Venezuela em 1998 e a inflexão da Política Externa do governo Cardoso no Brasil. Esse modelo de regionalismo tem como principais características a primazia da agenda política, do papel do Estado na coordenação econômica e na implementação de políticas sociais, como a redução de assimetrias estruturais e a inclusão de segmentos antes excluídos da cidadania política (Lima, 2013). Sanahuja (2010) aponta que o regionalismo pós-liberal é marcado por uma maior participação de atores estatais e pela criação de instituições abertas às dimensões sociais de integração e de uma agenda de desenvolvimento.

Ademais, o regionalismo pós-liberal se insere em um contexto internacional mais amplo, favorável ao protecionismo e ao nacionalismo econômico, onde os objetivos comerciais de liberalização são complementados com uma ampla agenda de integração e cooperação setorial (Veiga e Ríos, 2007). A compreensão do regionalismo pós-hegemônico, como definido por Tussie & Riggirozzi (2012) se caracteriza por um conjunto de estruturas regionais e práticas hibridas que surgem em um contexto de substituição das lógicas comerciais até então hegemônicas.

Neste sentido, Serbin, Martínez e Ramazini Jr. (2012) argumentam que esses processos se diferenciam do caráter neoliberal da década anterior por três retornos significativos: o retorno ao fortalecimento do Estado, o retorno à politização das relações regionais e o retorno a uma agenda desenvolvimentista com impulsionamento de uma agenda social.

No período, a construção de novas institucionalidades resultou em uma sobreposição de atores, membros e atribuições entre as organizações regionais. Nolte (2016) define esse processo como overlapping regionalism6, o qual não é necessariamente negativo, pois quando as instituições apresentam características complementares ou divisão de tarefas entre si podem aprofundar a integração regional. Em linha similar, Briceño Ruiz (2016) não compreende a justaposição de regimes como um problema, pois pode possibilitar uma variedade de processos e iniciativas das quais os países participam conforme lhes interessam. A Unasul, peculiarmente, se desenvolveu no interior das burocracias estatais sem necessariamente possuir ligação com setores empresariais ou da sociedade civil. Nesse movimento, o avanço da integração não é prejudicial à autonomia dos países, pois esse não foi pensado para unificar economicamente os países ou criar uma unidade política (Vigevani et al., 2014). Ademais, a Unasul não surgiu como alternativa aos regimes comerciais, mas para transcender a integração comercial, incluindo outras modalidades de cooperação regional, com a característica de avançar sobre as restrições geradas pela existência de distintos regimes comerciais na região (Lima, 2013).

A Unasul tem sua estrutura institucional dividida em dois eixos: o vertical, que concentra os mecanismos institucionais deliberativos e vinculados aos executivos nacionais; e o horizontal, que incorpora estruturas consultivas de cooperação em políticas setoriais. No primeiro eixo, temos: o Conselho de Estado e de Governo, o Conselho de Ministros e o Conselho de Delegados; além da Secretaria Geral. No eixo horizontal se encontram 12 Conselhos Setoriais que trabalham com temas e agendas específicas. Essa formatação institucional possibilitou uma nova abordagem em relação as políticas setoriais, em um arranjo que pretende formular e aplicar políticas públicas a nível regional. Nesse sentido, prevalece a concepção de busca por autonomia, mas ao mesmo tempo permite-se avançar em objetivos comuns de cooperação e a integração setorial (Vigevani et al., 2014).

Destacaram-se na Unasul temáticas como a Defesa e Segurança, a Saúde, a Infraestrutura e outros. Esses temas são pertencentes às novas dimensões da integração que o regionalismo pós-liberal introduziu na agenda da integração sul-americana (Veiga e Rios, 2007). O regionalismo pós-hegemônico desafiava o discurso sobre economias dependentes que reagem coletivamente às forças externas da globalização, sem constituir um projeto unitário contra a agenda econômica neoliberal (Tussie & Riggirozzi, 2012).

Entretanto, Sanahuja (2016) fundamenta que esse processo também se caracterizou por construir um regionalismo ligero, pois teve escassa densidade institucional e um caráter intergovernamental. Para o autor, o intuito de defender a soberania e evitar a construção de estruturas onerosas, não possibilitou a transferência de responsabilidades estatais para outras instituições e que possibilitassem a construção de um ordenamento jurídico comum (Sanahuja, 2016).

Neste sentido, Malumud e Gardini (2012) argumentam que o regionalismo latino-americano não evoluiu a outro paradigma, mas sim, transbordando sem se aprofundar ou voltando aos arranjos padrões de cooperação. No geral, este ciclo repousou sobre lideranças presidenciais fortes que projetaram metas de integração ambiciosas (Sanahuja, 2016), porém não superou as políticas governamentais para construir institucionalidades longínquas e resistentes aos ciclos políticos da região.

No entanto, o regionalismo pós-hegemônico possibilitou a reestruturação da cooperação temática na América do Sul com a abertura para novos eixos de atuação política como Segurança e Defesa (Bricenõ Ruiz; Hoffmann, 2015). Com intuito de aprofundar as discussões acerca das iniciativas sul-americanas em Defesa, debateremos no próximo bloco sobre a experiência do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS).

CDS: LOGROS, PROBLEMAS, DESAFIOS

Inaugurado em 2008, o CDS foi criado por todos os Estados membros da Unasul de forma a atentar para as temáticas de Defesa na região. Como objetivo de garantir a América do Sul como uma zona de paz, o conselho foi pensado para que se buscasse, conjuntamente, políticas e iniciativas que garantissem a estabilidade e o desenvolvimento social e econômico (Brasil, 2019).

Almejava-se, também, através do CDS, a criação e promoção de uma "identidade de defesa sul-americana" comum, a fim de que esta respondesse com alternativas próprias às diferentes necessidades que fossem impostas aos países da região (Brasil, 2019). Nesse sentido, percebe-se a importância da teoria dos CRS para o melhor entendimento deste objetivo, ao se observar e entender as ameaças a partir da região, os países sul-americanos tomavam para si a construção de respostas e alternativas regionais no tocante à defesa. A percepção da influência do espaço regional sobre a construção da agenda de segurança dos Estados sul-americanos esteve presente na formulação do órgão de concerta-ção de políticas de defesa na Unasul.

Com as características do complexo regional de segurança sul-americano já apresentadas, é possível entender como as dinâmicas regionais de segurança passaram por um processo de transformação de sua estrutura, levando a uma possibilidade de se perceber um complexo centrado até meados da década de 2010, como foi apontado por Fuccille e Rezende (2013). Fundamental para essa percepção, o CDS -juntamente com a Unasul- seria o principal instrumento de coordenação regional em matéria de Defesa e contaria com um maior engajamento brasileiro na temática, tendo em vista seu papel centralizador do complexo.

Porém, para além das importantes contribuições trazidas pelo instrumento analítico dos CRS, é possível complementar os entendimentos sobre o segurança e defesa regional, que desencadearam na criação do CDS a partir, também, de teóricos de integração regional ou regionalismo. Com efeito, os esforços cooperativos na América do Sul da década de 2000 estiveram distribuídos em distintas áreas relevantes às unidades políticas da região. Destaca-se, especialmente, os entendimentos de Mattli (1999), o qual, apesar de se debruçar sobre os processos de integração no campo da economia, contribuiu para a análise em outras esferas por seus entendimentos sobre os incentivos à integração e cooperação regional.

Destarte, coloca-se como forte incentivo para a integração duas questões, uma interna à região e outra externa a essa, a ler: a existência de uma liderança regional e os choques externos ou externalidades (Mattli, 1999). Assim, o papel de liderança regional que o Brasil desempenha ao longos da década de 2000 e a alternativa que se busca fazer ao projeto estadunidense, e às instituições regionais que o representava, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), podem ser entendidos como os dois eixos que embasam e possibilitam a formação de uma coordenação regional em matéria de segurança e defesa, materializada no CDS.

Tal entendimento se relaciona, diretamente, com as próprias dinâmicas de um CRS, como expostas por Buzan e Wæver (2003), uma vez que a presença (ou não) de uma potência global -variável interna- e a penetração ou sobreposição de potências externas, são elementos fundamentais para composição da própria constelação de segurança proposta pelos autores.

Assim, a demanda contínua para a integração e a existência de uma liderança regional incentivariam e possibilitariam o sucesso de um projeto de integração ou cooperação (Mattli, 1999). Porém, a perda desses fatores também seria crucial para se entender o arrefecimento e fracasso de projetos de integração regional. Portanto, o CDS se insere dentro de um contexto de transformação das dinâmicas externas e internas da região, que possibilitaram o desenho institucional da Unasul e, posteriormente, do próprio conselho.

O supracitado contexto pode ser lido a partir do relativo declínio da hegemonia estadunidense na primeira década do século XXI, ao qual se seguiu a perda de importância estratégica da região para os EUA7 e com a recuperação econômica na região, que no contexto da "onda rosa", possibilitaram a coordenação regional (Costa, 2009; Carmo; Pecequilo, 2016; Fuccille; Rezende, 2013; Herz, 2002; Ocampo, 2007).

Além dos objetivos do CDS já citados, a cooperação na área de defesa e segurança também visava:

[…] primeiro, a necessidade de equilibrar e excluir institucionalmente a OEA e os Estados Unidos, ainda que os membros da Unasul também sejam parte deste órgão internacional; segundo, gestam-se discursos e retóricas de legitimidade e necessidade de aprofundar as práticas da Unasul e de seu CDS para mediar crises futuras; e terceiro, geram-se discursos diferenciadores entre um "nós" (países da Unasul) e "os demais" (não membros) ainda que se esteja distante de se falar em uma identidade sul-americana de defesa e segurança. (Flemes; Nolte; Wehner, 2011, p. 123, tradução nossa8).

Percebe-se, portanto, como as influências extra regionais impactam na coordenação dos Estados sul-americanos para responder aos Estados e instituições externas, ficando claro a contraposição que a Unasul nasceu para fazer em relação à OEA, a qual, dominada pelos interesses estadunidenses, não mais representava os países ao sul do hemisfério americano (Villa; Bragatti, 2015; Pagliari, 2015). Assim, os países da região procuraram produzir as condições necessárias para se haver consenso na região quanto à cooperação em defesa na América do Sul (Pagliari, 2015).

O CDS ainda representou um importante avanço na concertação em matéria de defesa e segurança para a região por possibilitar a modificação dos padrões de relacionamento na área, historicamente bilaterais, para uma proposta multilateral de se pensar a cooperação em defesa na América do Sul (Pagliari, 2015). Para atingir tal objetivo, os Estados sul-americanos se dedicaram a fazer do CDS um espaço que possibilitasse consultas mútuas e coordenação entre seus membros, diferentemente do arranjo hemisférico representado pelo TIAR e sua lógica de segurança coletiva (Pagliari, 2015).

Contudo, apesar da proximidade entre muitos governos na região, o que possibilitou o surgimento do regionalismo pós-hegemônico, do qual a Unasul é uma de suas expressões, havia ainda na região um Estado que não se inseria nessa lógica, a Colômbia. Andrés Malamud (2011) aponta que, para a Colômbia, a parceria com os EUA é crucial para seus objetivos domésticos, o vem a impactar na própria construção de um bloco regional que tem, entre outros objetivos, a diminuição da influência dos EUA na região. Assim, a negociação com Bogotá para viabilizar a criação do CDS foi mais sensível, em vista das relações deste com os vizinhos e, especialmente, com Washington (Fuccille; Rezende, 2013).

Segundo Fuccille e Rezende (2013), os EUA, por meio da relação com a Colômbia, conseguiram afetar na estrutura que veio a ser formada, para os autores, uma "(…) estrutura suavizada (não-operativa) (Fuccille; Rezende, 2013, p. 90). Tendo em vista os receios de Bogotá frente a uma América do Sul voltada para a centro-esquerda, levando à possibilidade de não participação desta no CDS, era preciso se viabilizar um modelo que permitisse ou assegurasse a participação do Estado andino, se não o conselho seria esvaziado de sua "(…) substância e sentido (…)" (Fuccille; Rezende, 2013, p. 90).

O resultado final foi a criação de um Conselho que já continha os sinais de dificuldades e de fragilidade. A necessidade de consenso para as decisões do Conselho se mostrou um grande empecilho para a longevidade do mesmo, visto que as modificações políticas domésticas e as inflexões vistas na região logo o afetaram, bem como a toda a Unasul. Contudo, as expectativas eram de que o Conselho poderia representar a "(…) passagem de um modelo caduco de segurança coletiva a uma nova forma mais dinâmica de segurança cooperativa (Fuccille; Rezende, 2013, p. 91).

Nesse sentido, Pagliari (2015) destaca como fundamental a construção de confiança, de forma a reduzir "percepções equivocadas e desconfianças" entre os Estados da região. A partir desses mecanismos, esperava-se construir uma identidade regional, uma vez que as identidades "[…] estão permanentemente em processo, sempre contestadas e constituem um resultado da prática" (Wendt, 2003, p. 340, tradução nossa9). Assim, os novos padrões de comportamento e relacionamento que eram buscados, e a coordenação no campo de defesa, podem ser entendidos dentro desse contexto.

Portanto, mesmo que a criação do CDS e sua atuação permanecesse mais no campo da cooperação do que da integração, é de extrema importância que os países da região tenham dado, também na área de defesa e segurança, sequência ao que Bizzozero (2001, p. 320, tradução nossa10) já analisava ao final do século XX, isto é, que os países latino-americanos "perceberão a resposta regional como uma ferramenta da política externa para a inserção na política internacional (e não somente competitiva)" .

Contudo, visto que nosso objetivo é analisar a cooperação e integração em matéria de defesa, pode-se adiantar que as circunstâncias que possibilitaram sua materialização se exauriram e deixaram de existir a partir de meados dos anos 2010. Com a perda de liderança regional, bem como com a reestruturação da potência hegemônica, o que Carmo e Pecequilo (2016) chamaram de "contrarreação hegemônica". Ademais, a desaceleração do crescimento chinês, impactando na sua atuação na América do Sul também se apresenta como importante ponto de inflexão para essa transformação dos caminhos que a região vinha trilhando (Vaz; Fuccille; Rezende, 2017).

O que se percebe já na segunda metade da década de 2010 é o recrudescimento dos mecanismos regionais criados no ciclo anterior, seguindo a uma nova composição ideológica na região, seguindo a chegada ao poder de governos à direita do espectro político. Assim, o que Flemes, Nolte e Wehner já observavam em 2011, veio a se tornar ainda mais marcante, uma vez que: "a existência de problemas de matiz ideológico e eventuais desequilíbrios de poder tende a diminuir o compromisso em avançar uma agenda de segurança comum no CDS (Flemes; Nolte; Wehner, 2011, p. 110, tradução nossa11).

Doravante essa nova composição ideológica na região, o segundo decênio do século XXI vem apresentando o movimento reverso ao período anterior, o do "regionalismo pós-hegemônico". O esvaziamento das instituições regionais pelos novos governos é possibilitado por duas situações: o desinteresse do Brasil em desempenhar o papel de liderança regional e a perda da demanda integrativa contínua levaram a superação do que Mattli (1999) destacava como elementos motivadores da integração (Vaz; Fuccille; Rezende, 2017).

Assim, as fragilidades e dificuldades das estruturas criadas na década anterior ficaram claras, demonstrando os parcos resultados e vinculações que foram capazes de criar com os Estados. A Unasul e o CDS são bons exemplos dessa situação, visto que, segundo Pagliari (2015), não possibilitaram a superação dos mecanismos hemisféricos e por não criarem os vínculos necessários para a cooperação em defesa, levaram a um retorno dos atuais governos aos mecanismos de coordenação hemisférica e à busca por novos foros de organização como o Grupo de Lima, que busca responder à atual crise na Venezuela a partir de uma coordenação não mais sul-americana.

Além disso, mesmo durante o período mais ativo da operacionalidade do CDS, o conselho e os Estados não conseguiram romper certas relações de rivalidade, ainda que estas fossem atenuadas pela busca de medidas de confiança. Especialmente no caso dos países andinos, as disputas fronteiriças ainda existentes demonstravam as divergências internas ao complexo sul-americano, com duas realidades diferentes, especialmente entre os principais países do Cone-Sul (Brasil e Argentina) e os andinos (Colômbia e Venezuela) (Pagliari, 2015).

A situação dos países andinos toma contornos preocupantes, especialmente no que diz respeito a atual situação venezuelana, que se intensificou e se desenha como a principal instabilidade regional em muitos anos. A fragilidade do CDS se mostra no momento em que ele poderia ser fundamental para região, e ainda assim não se fala mais no conselho, visto o abandono temporário ou definitivo, da Unasul por diversos países da região em 201812.

Contudo, se o CDS seria capaz de resolver a situação também é incerto, visto que o conselho se mostrou um importante espaço de diálogo e consulta, mas que foi ineficaz na sua atuação para resolução de problemas (MARES, 2012). Além disso, há que se destacar na institucionalidade do CDS, a sua fragilidade latente já na segunda década do século XXI, a qual é enfatizada por Vaz, Fuccille e Rezende (2017, tradução nossa13):

[…] o fato de que o CDS instituiu o consenso como critério prioritário para o processo deliberativo, enquanto permanece impossibilitado em tomar decisões vinculantes foi percebido como uma potencial limitação se a estabilidade regional fosse severamente minada e uma ação regional fosse considerada imperativa.

Não obstante todas essas dificuldades citadas anteriormente, novos desafios se apresentam para a região, contestando, inclusive, a imagem de uma América do Sul pacífica, com o acirrar da crise na Venezuela. O que se percebe é uma penetração cada vez maior de atores internacionais na região, inclusive se apresentando como algo novo, distinto do período da Guerra Fria, com uma maior proximidade do governo de Maduro de países como Rússia e China, bem como a maior presença destes na região.

Ademais, a maior atenção dispensada pelos EUA na região, bem como a entrada da Colômbia na OTAN (Colombo, 2018) e os novos governos mais alinhados a Washington representam um momento de internalização das ameaças percebidas pelos estadunidenses, alinhando-se à política desempenhada pela Casa Branca de Trump.

É nessa situação que se encontra o Brasil, país que até recentemente desempenhava o papel de liderança regional, bem como de estabilizador das disputas e conflitos regionais, não mais tem tal interesse ou viu suas capacidades afetadas pelas crises econômica e política pelas quais o país passa. Em agravo, o governo de Jair Bolsonaro, eleito em 2018, retoma uma linha da política externa ligada de maior proximidade com os EUA, inclusive de alinhamento ideológico aos interesses estadunidenses.

Assim, o futuro da região se mostra incerto e indefinido, visto que mesmo com a maior atenção dispensada por Washington para a América do Sul, as presenças chinesa e russa se mostram desafiadoras para a concretização dos interesses estadunidenses para os países da região, especialmente para Caracas. Muito provavelmente a situação venezuelana será o principal divisor de águas para o futuro da região e para a penetração extra regional e global na América do Sul, bem como para como os diferentes países vão se portar frente a um conflito ou a instauração de um governo provisório, o qual ainda que já reconhecido por vários países não detém o controle dos instrumentos de poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inescapável interconectividade das questões de segurança em agrupamentos regionais revela a demanda por investigações que transcendam os espaços nacionais de determinação de ameaças em busca de análises que envolvam também a participação do conjunto de atores que compõem a mesma região. A polaridade das relações entre os atores de um CRS permite sua categorização em diferentes tipos. A constituição de um CRS na América do Sul a partir da confluência das relações estabelecidas entre os Estados das regiões norte-andina e do cone-sul foi caracterizada pelo exercício brasileiro de uma função aglutinadora.

A tradição dos Estados sul-americanos em enredar projetos de cooperação regional em blocos subsidiários é longeva. Identifica-se, no entanto, a ausência de iniciativas compostas por todos os Estados da região e independentes do montante de interesses estadunidenses. É preciso notar que esses arranjos estiveram predominantemente voltados a questões comerciais, frequentemente negligenciando outros temas relevantes às agendas políticas na região. Outrossim, não é possível negligenciar o acúmulo de arranjos bilaterais de cooperação em distintas matérias.

Portanto, destaca-se que a fundação da Unasul e, posteriormente, de seu CDS representaram a abertura de um foro caro à concertação sul-americana menos dependente dos interesses estadunidenses e do espaço institucional da OEA. Além de diversificar as áreas de cooperação e concertação regional, inclusive na área de Defesa e Segurança. Todavia, as expectativas em torno desse arranjo institucional sul-americanos foram minadas ao longo da década de 2010. Percebe-se, então, os limites do chamado regionalismo pós-hegemônico, dependente da congruência de interesses e preferências dos diferentes governos nacionais, ineficaz na construção de um projeto longevo de cooperação na região.

O congelamento do diálogo na Unasul, e em específico em seu CDS, ao longo da década de 2010 refletiu alterações significativas nas preferências dos Estados sul-americanos em relação às iniciativas de cooperação no subcontinente. Além disso, acentuou as limitações do conselho desde sua criação, a estrutura viabilizada pelas diferenças regionais, especialmente no que tange a Colômbia, se mostrou um entrave à consolidação do Conselho. O agravamento da crise na Venezuela e a o esvaziamento institucional promovido por outros Estados membros do arranjo corroboram o diagnóstico de arrefecimento da cooperação sul-americana.

Ademais, é possível visualizar a consolidação de governos que valorizam relações prioritárias com os Estados Unidos e potências extra-regionais em detrimento das relações cooperativas no subcontinente. É adequado, portanto, indicar a severa dependência desse arranjo regional em relação aos esforços e incentivos governamentais.


NOTAS

1 O processo de securitização pode ser sinteticamente definido como a "determinação intersubjetiva de uma ameaça existencial" que permite o exercício de práticas excepcionais (Buzan; Wæver; Wilde, 1998, p. 25).
2 Para uma leitura instigante sobre os processos de securitização recomendamos: Motta, B. V. C. Securitização e política de exceção: o excepcionalismo internacionalista norte-americano na Segunda Guerra do Iraque. São Paulo: Ed. UNESP, 2018.2
3 A participação da Federação Russa na crise venezuelana demanda consideração, assim como a crescente influência da República Popular da China nas matérias globais de segurança.
4 No original: " The region has been transnationally unified more at the level of ideas and ideals, where symbolic figures are often shared, whereas the level of interests and actions has remained more fragmented" (Buzan; Wæver, 2003, p. 318).
5 Conceito sobre a interligação entre o internacional e o doméstico, que pretende dialogar sobre como condições internas são indissociáveis da política externa.
6 Reflete sobre a sobreposição de instituições regionais em relação a seus mandatos ou membros associados. Conceito que pretende discutir a proliferação de instituições regionais e as consequências para a atuação das instituições criadas e antigas que possuem mandatos similares. No caso do regionalismo sul-americano são recorrentes as reflexões acerca da sobreposição de mandatos da OEA e da UNASUL.
7 Especialmente após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.
8 No original: "[…] primero, la necesidad de equilibrar y excluir institucionalmente a la oea y a los Estados Unidos por mucho que los miembros de la unasur también sean parte de este otro órgano internacional; segundo; se generan discursos y retóricas de legitimidady necesidad de profundizar las prácticas de la unasur y su cds para mediar en crisis futuras; y tercero, se generan discursos diferenciadores entre un «nosotros» (países de unasur) y «los demás» (no-miembros), aunque aún se está lejos de hablar de una identidad sudamericana de defensa y seguridad". (Flemes; Nolte; Wehner, 2011, p. 123).
9 No original: ""(…) are always in process, always contested, always an accomplishment ofpractice." (Wendt, 2003, p. 340).
10 No original: "(…) visualizaron la respuesta regional como una herramienta de la política exterior para la inserción política internacional (y no solo competitiva)." (Bizzozero, 2001, p. 320).
11 No original: "Za existencia de problemas con tintes ideológicos y de eventuales desequilibrios de poder, tiende a diminuir el compromiso por avanzar em una agenda de seguridad común en el CDS." (Flemes; Nolte; Wehner, 2011, p. 110).
12 Redação, 20 abr. 2018. Brasil e outros cinco países suspendem participação na Unasul, diz fonte. EXAME, Brasília. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-e-outros-cinco-paises-suspendem-participacao-na-unasul--diz-fonte/> Acesso em: 20 ago. 2018.
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13 No original: the fact that the SADC embraced consensus as primary criterion for decision-making, while at the same time lacking binding decision-making powers was perceived as a significant potential constraint if regional stability was to be severely undermined and regional action was deemed as imperative. (Vaz; Fuccille; Rezende, 2017).


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