A Turquia enquanto potência regional: uma análise da estratégia turca para o continente africano a partir dos anos 2000

TURQUÍA COMO POTENCIA REGIONAL: UN ANÁLISIS DE LA ESTRATEGIA TURCA HACIA EL CONTINENTE AFRICANO DESDE LA DÉCADA DE 2000

TURKEY AS A REGIONAL POWER: AN ANALYSIS OF THE TURKISH STRATEGY FOR THE AFRICAN CONTINENT SINCE THE 2000

Guilherme Ziebell de Oliveira*
Raquel Zaffari Losekann**

* PhD, Universidad Federal de Rio Grande do Sul. Professor Adjunto, Universidad Federal de Rio Grande do Sul. [guilherme.ziebell@ufrgs.br]; [https://orcid.org/0000-0002-0118-6279].

** Licenciada, Universidad do Vale do Rio dos Sinos. Estudiante de maestría, Universidad Federal de Rio Grande do Sul. [losekannr@gmail.com]; [https://orcid.org/0000-0002-0118-6279].

Recibido: 8 de julio de 2023 / Modificado: 25 de septiembre de 2023 / Aceptado: 9 de octubre de 2023

Para citar este artículo:

Ziebell de Oliveira, G., & Zaffari, R. (2023). A Turquia enquanto potência regional: uma análise da estratégia turca para o continente africano a partir dos anos 2000. Oasis, 39, 59-85. DOI: https://doi.org/10.18601/16577558.n39.05


RESUMO

O presente artigo tem como tema a política externa turca para o continente africano no século XXI. Com o fim da Guerra Fria e da ordem mundial centrada na lógica bipolar, a Turquia passou a contar com maior autonomia para gerir as suas relações internacionais, mantendo uma política externa mais ativa ao ampliar as suas relações econômicas, diplomáticas e securitárias para além do Ocidente. Nesse contexto, sob a direção do Partido para a Justiça e Desenvolvimento (AKP), o continente africano passou a ocupar lugar de crescente destaque nas relações exteriores turcas. Assim, a partir do início dos anos 2000, verifica-se um incremento substancial da presença turca no continente, caracterizada, entre outros, pela intensificação dos fluxos comerciais bilaterais, pela expansão da rede diplomática no continente, pela sua participação na mediação de conflitos e na oferta de assistência humanitária a atores africanos, entre outros. Diante disso, o trabalho discute a intensificação dos laços da Turquia com os países do continente africano a partir do início do século XXI, compreendendo-a como parte de uma estratégia de projeção internacional mais ampla, a partir da Turquia enquanto uma Potência Regional. Para tanto, adota uma abordagem hermenêutica, apoiando-se na revisão de literatura sobre as relações turco-africanas e na análise, a partir de dados quantitativos, do desenvolvimento dessas relações nos eixos político, econômico e securitário ao longo do período em questão.

Palavras-chave: Turquia; África; estratégia; Potências Regionais.


RESUMEN

Este artículo trata de la política exterior turca hacia el continente africano en el siglo XXI. Con el fin de la Guerra Fría y del orden mundial centrado en una lógica bipolar, Turquía ha tenido mayor autonomía para gestionar sus relaciones internacionales, manteniendo una política exterior más activa al ampliar sus relaciones económicas, diplomáticas y de seguridad más allá de Occidente. En este contexto, bajo el liderazgo del Partido de la Justicia y el Desarrollo (AKP), el continente africano ha pasado a ocupar un lugar cada vez más destacado en las relaciones exteriores turcas. Así, desde principios de la década de 2000, se ha producido un aumento sustancial de la presencia de Turquía en el continente, caracterizada, entre otros aspectos, por la intensificación de los flujos comerciales bilaterales, la ampliación de la red diplomática en el continente, su participación en la mediación de conflictos y la oferta de ayuda humanitaria a los actores africanos. Así, y basándose en la literatura sobre potencias medias y potencias regionales, el estudio analiza la intensificación de los vínculos de Turquía con los países africanos desde principios del siglo XXI, entendiéndola como parte de una estrategia de proyección internacional más amplia. Para ello, el escrito adopta un enfoque hermenéutico, apoyándose en la revisión de la literatura sobre las relaciones turco-africanas y el análisis de datos cuantitativos de la evolución de estas relaciones en los ejes político, económico y de seguridad a lo largo del período en cuestión.

Palabras clave: Turquía; África; estrategia; potencias regionales.


ABSTRACT

This article aims to analyze the Turkish foreign policy towards the African continent in the 21st century. With the end of the Cold War and the world order centered on a bipolar logic, Turkey has had greater autonomy to manage its international relations, maintaining a more active foreign policy by expanding its economic, diplomatic, and security affairs beyond the West. In this context, under the leadership of the Justice and Development Party (AKP), the African continent has come to occupy an increasingly prominent place in Turkish foreign relations. Thus, since the early 2000s, there has been a substantial increase in Turkey's presence on the continent, characterized, among other aspects, by the intensification of bilateral trade flows, the expansion of the diplomatic network on the continent, its participation in the mediation of conflicts and the offer of humanitarian assistance to African actors. In this context, and based on the literature on Middle Powers and Regional Powers, this paper discusses the intensification ofTurkey's ties with African countries since the beginning of the 21st century, comprehending it as part of a broader international projection strategy. To this end, the study adopts a hermeneutic approach, relying on the literature review on Turkish-African relations and the analysis, supported by quantitative data, of the developments of these relations in the political, economic, and security axes throughout the period in question.

Key words: Turkey; Africa; strategy; Regional Powers.


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como tema a política externa turca para a África no século XXI. A Política Externa da Turquia, a partir de sua estruturação, tem suas raízes na formação do Estado turco no período posterior ao encerramento da Primeira Guerra Mundial, da qual o Império Otomano saiu profundamente enfraquecido, acabando por se dissolver. A elite kemalista liderada por Mustafa Kemal "Ataturk", nesse contexto, visava criar uma nação independente, soberana, secular e próxima ao Ocidente (Özkan & Akgün, 2010). Diante disso, de maneira geral, desde então, a Turquia manteve-se alinhada fundamentalmente ao Ocidente, tendo suas relações políticas, econômicas e, sobretudo, militares com as potências ocidentais como pilares fundamentais de sua política externa, realidade que se expressou com ainda mais força ao longo da Guerra Fria (Aydin & Ismael, 2019).

As transformações internacionais provenientes do encerramento do conflito bipolar e, sobretudo, do colapso do bloco soviético, trouxeram um conjunto de novos desafios e oportunidades para a Turquia, desencadeando assim um processo de reflexão a respeito do papel do país no mundo e, consequentemente, de reformulação de sua política externa (Sözen, 2006; Özkan & Akgün, 2010).

Nesse contexto, as relações internacionais passaram a, progressivamente, ser marcadas não apenas pela redução da influência (e da presença) das superpotências do conflito bipolar em algumas regiões do mundo (resultado tanto do colapso da própria União Soviética quanto da reconfiguração geoestratégica global dele resultante), mas também (e em parte como resultado disso) pela progressiva emergência de novas potências, de caráter regional (Destradi et al., 2018). Estas Potências Regionais, não mais constrangidas pelas amarras da disputa entre as superpotências, passaram a, cada vez mais, influenciar as dinâmicas políticas e securitárias de suas respectivas regiões a partir das suas próprias perspectivas (Buzan & Wæver, 2003). Nesse conjunto de atores estariam incluídos, entre outros, países como Nigéria, Brasil, Indonésia, África do Sul, Irã e também a Turquia, que, dada sua posição geográfica, lograria exercer influência em mais de uma região, como os Balcãs, o Oriente Médio e o Cáucaso (Destradi et al., 2018).

Nesse contexto de transformações, a partir do início da década de 1990, a Turquia passou a buscar diversificar suas relações diplomáticas e estreitar laços para além do Ocidente, apresentando uma posição de maior projeção diplomática em diversas regiões do mundo (Monié, 2022). Isso ficou ainda mais evidente, especialmente, a partir do início do século XXI, com a política externa adotada pelo governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, sigla em turco) após sua chegada ao poder em 2002 (Bilgel et al., 2020). Diante do fracasso da tentativa de ingresso no bloco europeu, reforçou-se, crescentemente, a busca turca por consolidar uma posição de protagonismo regional e de projeção global, percebendo-se como ator fundamental na conexão entre o Ocidente, a Ásia Central e o continente africano (Davutoğlu, 2008; Langan, 2016).

A África, diante disso, progressivamente se tornou um espaço prioritário para a atuação da política externa turca (Özkan & Akgün, 2010). O continente, que ao longo da década de 1980 experimentara uma profunda crise econômica - potencializada, em grande medida, pela fragilização dos Estados fomentada pela adoção dos Programas de Ajuste Estrutural impostos pelas Instituições Financeiras Internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional) - vivenciou, na década de 1990, um cenário complexo. Enquanto, por um lado, alguns atores experimentaram processos de estabilização, que lhes permitiram adotar uma posição de protagonismo em termos continentais (casos da África do Sul, da Líbia e da Nigéria, por exemplo), por outro, diversos países enfrentaram processos violentos de reconfiguração das relações de poder, mergulhando em intensos conflitos armados (casos de Serra Leoa, de Ruanda e da República Democrática do Congo, entre outros) (Chazan et al., 1999).

Paralelamente a essas dinâmicas distintas, o continente, em seu conjunto, conheceu uma profunda marginalização nas relações internacionais. Destituída de relevância geoestratégica (dado o fim do conflito bipolar), e diante da consolidação da hegemonia do neoliberalismo em nível internacional (marcada, entre outros, pela ascensão de governos de viés neoliberal em espaços como a América Latina e o Leste Europeu), a África passou a receber ainda menos investimentos - não apenas econômicos, mas também políticos -, especialmente por parte das grandes potências das relações internacionais (Oliveira, 2019). Foi justamente diante desta realidade que outros atores internacionais, dentre os quais a Turquia, passaram a, crescentemente incrementar sua interação com os países do continente africano (Carmody, 2016).

Nesse contexto, em 1998, o governo turco lançou o Opening to Africa Action Plan, um plano que inaugurou uma política turca para a África, e que estabelecia as diretrizes para fomentar as relações econômicas, políticas e securitárias com o continente (Özkan, 2008; Siradağ, 2018). Desde então, e com maior ênfase a partir do século XXI, a política externa turca tem dado especial atenção para a África, que passou a ganhar destaque como mercado consumidor de produtos turcos, bem como espaço propício para acordos nos âmbitos militar, tecnológico e econômico. Com isso, os laços turcos com o continente têm experimentado um incremento substancial, o que tem se caracterizado, entre outros, pela intensificação dos fluxos comerciais bilaterais, pela expansão da rede diplomática no continente, pela participação turca na mediação de conflitos e pela oferta de assistência humanitária a atores africanos, entre outros. O continente, nesse contexto, tem se mostrado como um espaço estratégico para a Turquia, indo ao encontro do interesse turco de ser um ator proativo em assuntos de relevância global, como o multilateralismo, a cooperação, o desenvolvimento e as questões humanitárias (Kardaş, 2013).

Diante disso, o presente artigo propõe uma análise desse processo de intensificação dos laços da Turquia com os países do continente africano a partir do início do século XXI, compreendendo-o como parte de uma estratégia de projeção internacional mais ampla. A pergunta de pesquisa que se busca responder é a seguinte: em que medida os movimentos de aproximação da Turquia com o continente africano contribuem para o fortalecimento da posição turca enquanto uma Potência Regional? Como hipótese de trabalho, tem-se que tal aproximação, que pode ser verificada nos âmbitos político/diplomático, econômico/comercial e militar/securitário, reforça o reconhecimento internacional de que a Turquia ocupa a condição de Potência Regional, além de contribuir para reforçar as capacidades materiais turcas (em termos políticos, econômicos, militares, diplomáticos, etc.). Tal realidade, por sua vez, também contribui para reforçar esse mesmo reconhecimento em nível regional, contribuindo para que a Turquia se consolide efetivamente como uma Potência Regional.

O objetivo principal do trabalho, destarte, é compreender como o estreitamento dos laços da Turquia com os países do continente africano no século XXI contribui para fortalecer sua posição de Potência Regional. De forma objetiva, busca-se compreender como essa aproximação foi construída a partir de três dimensões fundamentais, a político/diplomática, a econômico/comercial e a militar/securitária, bem como quais seus impactos para a projeção turca para o continente africano como um todo. De forma a promover a análise proposta, o artigo adota uma abordagem hermenêutica, apoiando-se na revisão de literatura sobre as relações turco-africanas e na análise dos desenvolvimentos dessas relações ao longo do período em questão. Busca-se, a partir da análise proposta, compreender como tem se dado a aproximação turca com o continente africano no século XXI, bem como seus impactos para tais relações, tendo em vista que a condição de Potência Regional pressupõe não apenas a existência de capacidades materiais, mas também o reconhecimento de tal condição (seja pelos membros da região, seja por atores extrarregionais).

Para além desta introdução e da seção de conclusões, o artigo conta com quatro seções. Na primeira, apresenta-se uma breve discussão sobre o conceito de Potência Regional, central para a compreensão da questão aqui proposta. Nas três seções subsequentes, são analisados os desenvolvimentos das relações entre a Turquia e o continente africano no século XXI nas dimensões político/diplomática, econômico/comercial e militar/securitária, visando permitir a compreensão tanto de quais ações foram tomadas pela Turquia em sua busca por estreitar os laços com o continente africano no século XXI, quanto de seus impactos imediatos para as relações entre o país e seus pares no continente africano e de seus reflexos para a consolidação da Turquia enquanto uma Potência Regional.

A RELEVÂNCIA DAS POTÊNCIAS REGIONAIS E SUAS CARACTERÍSTICAS

Com o encerramento da Guerra Fria, tornou-se muito mais difícil definir a Ordem Mundial vigente. Embora os Estados Unidos permanecessem como a grande potência global, outras nações passaram a, progressivamente, ter um posicionamento destacado em suas respectivas regiões, projetando suas capacidades nessa dimensão e influenciando crescentemente as dinâmicas políticas, econômicas e securitárias de seu entorno a partir de suas próprias perspectivas (Buzan & Wæver, 2003). Essas transformações, em conjunto com uma série de alterações nas dinâmicas de poder globais - as quais implicavam, entre outras, em uma retirada dos EUA de diversas regiões do mundo -, contribuíram para um aumento da importância de processos de governança regional, os quais se consolidaram como uma das principais características da política internacional no início do século XXI (Acharya, 2007; Destradi et al., 2018). Nesse contexto, as diversas regiões passaram a ter maior autonomia do que aquela de que gozavam no contexto da Guerra Fria, e, diante da ausência de uma superpotência capaz de (ou disposta a) manter a segurança na região, houve um incremento na importância das dinâmicas de balança de poder regionais (Destradi et al., 2018).

Diante disso, ganharam força as discussões a respeito do papel - e do potencial - que os atores de maior destaque nas diferentes regiões, a partir de então chamados de Potências Regionais, teriam para moldar os seus respectivos espaços regionais, bem como dos eventuais impactos que eles poderiam ter em termos da definição das agendas políticas internacionais (Flemes, 2007; Nel & Nolte, 2010). Como parte dessas reflexões, fortaleceram-se também as discussões a respeito de quais seriam as características definidoras das Potências Regionais (Destradi et al., 2018). Dentre elas, destaca-se aquela proposta por Daniel Flemes (2007), que busca compreender o espaço de poder das Potências Regionais nas relações internacionais, bem como seu sucesso em influenciar os processos e estruturas do Sistema Internacional.

De acordo com o autor, potências regionais seriam Estados que reuniram quatro características principais (Flemes, 2007). Em primeiro lugar, seriam atores que reclamariam para si uma posição de liderança, propondo-se a assumir a função de estabilizadores regionais - em termos securitários e econômicos. Em segundo lugar, seriam Estados dotados de recursos de poder materiais (em termos militares, demográficos, geográficos, econômicos e de desenvolvimento humano) e ideacionais (um conjunto de valores e objetivos políticos e sociais capazes de gerar credibilidade, legitimidade e autoridade moral em contextos de barganha) significativos. Em terceiro lugar, seriam aqueles atores com capacidade de empregar distintos instrumentos de política externa em suas interações internacionais, os quais lhes permitiriam exercer seu poder de distintas maneiras, em um continuum entre coerção e persuasão. Por fim, seriam Estados que gozariam da aceitação e do reconhecimento - tanto em nível regional, quanto em nível global - de ocuparem tal posição (Flemes, 2007). Nesse sentido, para além do engajamento regional, tais atores também teriam uma projeção global, isto é, a condição de mobilizar as capacidades materiais e subjetivas da política externa a fim de contribuir para influenciar ou liderar os principais assuntos e problemáticas de determinada região ou regiões (Mesquita & Chien, 2021).

É interessante destacar que, enquanto as três primeiras características definidoras das Potências Regionais seriam primordialmente dependentes delas próprias, a aceitação e o reconhecimento, regional e global, desta condição não está sob controle direto desses atores. Nesse sentido, tal reconhecimento seria, ao mesmo tempo, uma característica das Potências Regionais e uma condição necessária para ocupar tal posição (Nolte, 2010; Destradi et al., 2018). Tal consideração se faz relevante, entre outros, porque este reconhecimento não deriva, obrigatoriamente, da existência de condições materiais objetivas, podendo ser resultado de - ou ao menos influenciado por - percepções ideacionais.

É justamente por conta disso que a projeção internacional de um país também pode impactar na sua consolidação enquanto uma Potência Regional. O fortalecimento de laços com parceiros extrarregionais, nesse contexto, pode não apenas fomentar um reconhecimento externo de uma posição de Potência Regional, mas também, a partir disso, contribuir para a consolidação de tal imagem na própria região. Por um lado, isso se daria não apenas porque tais relações tenderiam a contribuir para fortalecer as capacidades do Estado em questão, mas também porque haveria uma tendência ao reforço do reconhecimento, pelos vizinhos, das capacidades desse ator (sejam essas efetivamente fortalecidas, ou não). Por outro, porque o reconhecimento externo da condição de Potência Regional estaria acompanhado do reconhecimento da posição de representante da região. Diante disso, seria muito provável que também se incrementasse o reconhecimento desta condição por parte dos vizinhos, motivados pela expectativa de terem os seus interesses em nível internacional também representados pela Potência Regional (Nolte, 2010).

Tendo isso em conta, passa-se, a seguir, a uma análise das relações turcas com o continente africano a partir do início do século XXI com foco em três dimensões: a político/diplomática; a econômico/comercial; e a militar/securitária. Nesse sentido, busca-se discutir o fortalecimento dessas relações tanto em termos da sua dimensão material quanto de sua dimensão ideacional, elementos fundamentais para a caracterização da Turquia enquanto uma potência regional.

A DIMENSÃO POLÍTICO-DIPLOMÁTICA DAS RELAÇÕES TURCO-AFRICANAS

Ainda que ao longo do século XX a Turquia mantivesse relações diplomáticas com diversos países do continente, a África jamais ocupou um espaço de destaque na agenda internacional do país (Donelli, 2018). Nesse sentido, embora o continente africano tenha passado a fazer parte das possibilidades de relações diplomáticas da Turquia na década de 1980, com o presidente Turgut Ozal, foi durante os governos AKP que as relações entre os países africanos e a Turquia se intensificaram e contaram com iniciativas de grande investimento (Siradağ, 2018). Foi apenas com a adoção por Ankara, em 1998, do Opening to Africa Action Plan, que se inaugurou uma política externa turca para o continente africano (Dodo, 2016). O plano estabelecia uma série de objetivos a serem alcançados, dentre os quais a intensificação do comércio e dos investimentos, a abertura de embaixadas, o fornecimento de ajuda humanitária aos países do continente, o fomento de viagens de negócios, e o estabelecimento da Turquia como doador do Banco Africano de Desenvolvimento (Bilgic & Nascimento, 2014).

Em linhas gerais, a adoção do plano era um reflexo da busca, do AKP, por direcionar a política externa turca a outros eixos que não o tradicional bloco ocidental. Sendo assim, o governo turco procurou ressaltar os laços identitários com os países africanos e países muçulmanos, considerando questões históricas e a população turca, majoritariamente muçulmana. O partido, com isso, procurava flexibilizar a ideia de que a Turquia era um país de identidade estritamente secular e ocidental, desenvolvendo relações diplomáticas para além do tradicional da sua política externa (Siradağ, 2018). Nesse sentido, a construção de ligações políticas com a África foi perpassada pelo discurso turco de existência de laços históricos, religiosos e culturais com os países africanos, sendo estes apresentados como parceiros na construção das relações exteriores, e não apenas como "receptores de ajuda externa" (Pakin-Albayrakoglu, 2016). Diante disso, as iniciativas inauguradas a partir daí, relacionadas à abertura de embaixadas, à realização de visitas bilaterais, à promoção de projetos educacionais e culturais, ao incremento das relações comerciais e à assistência humanitária, entre outras, estiveram ligadas a uma política externa que buscava restabelecer estes laços, principalmente os de caráter religioso (Pakin-Albayrakoglu, 2016).

Após a adoção do Plano de Ação, o governo turco lançou, em 2003, a Estratégia para o Desenvolvimento de Relações Econômicas com os Países Africanos, que visava estabelecer as ações a serem tomadas para garantir a consecução dos objetivos do Plano de Ação (Dodo, 2016). Essas ações, já a partir de 2004, passaram a demonstrar resultados efetivos, sendo possível verificar um incremento tanto dos laços comerciais quanto da criação de projetos bilaterais com países africanos (Donelli, 2018). A despeito disso, todavia, o Plano de Ação nunca chegou a ser plenamente implementado, em grande parte por conta de questões internas - políticas e econômicas - turcas (Siradağ, 2018). Diante disso, foi apenas em 2005 que se verificou uma inflexão significativa no posicionamento turco com relação ao continente africano (Özkan, 2008; Langan, 2016; Donelli, 2018).

Naquele ano, o Primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan realizou uma viagem ao continente africano, visitando a Etiópia e a África do Sul - naquela que foi a primeira visita oficial de um premiê da Turquia a um país ao Sul da Linha do Equador (Özkan & Akgün, 2010). Além disso, o governo turco anunciou aquele como o "Ano da África" para a Turquia, dando início a uma investida de aproximação com regiões estratégicas no continente para a projeção turca enquanto Potência Regional. Nesse sentido, o país passou a buscar se apresentar como um parceiro ativo no apoio ao desenvolvimento africano, ressaltando como um importante diferencial sua posição intermediária - não apenas entre o Ocidente e o Oriente, mas também entre o Norte e o Sul (Donelli, 2018).

Além de buscar incrementar e expandir os laços diplomáticos com os países da África, por meio de um acelerado processo de abertura de novas embaixadas, o governo turco incentivou visitas bilaterais entre os representantes dos Estados e a organização de encontros entre as autoridades turcas e africanas, com o objetivo de formar parcerias principalmente a nível multilateral, como nas Nações Unidas e frente a outras Organizações Internacionais (Pakin-Albayrakoglu, 2016). Nesse sentido, enquanto em 2004 a Turquia possuía 12 embaixadas no continente africano, em 2013 estas já eram 34, atingindo a marca de 44 em 2023 (Donelli, 2021b; MFA, 2023b). Ainda, enquanto em 2008 eram 13 embaixadas residentes de países africanos em Ankara, em 2016 esse número já era de 30, atingindo a marca de 34 em 2023 (Dodo, 2016; MFA, 2023). Além disso, tanto enquanto Primeiro-ministro (2003-2014), quanto como Presidente (2014-presente), Erdoğan manteve uma ativa e regular agenda de visitas à África, tendo realizado visitas oficiais a mais de trinta países do continente (MFA, 2023b).1 Nesse contexto, os países da África Ocidental, região de população majoritariamente muçulmana sunita, ganharam destaque, o que se refletiu em uma priorização das relações e parcerias com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) (Monié, 2022).

Além da busca por incrementar as relações bilaterais com países africanos, a iniciativa turca também passou a visar o fortalecimento da cooperação institucional com o continente (Donelli, 2018). Diante disso, desde a criação da União Africana (UA), em 2002, a Turquia passou a participar como convidado nas reuniões da Organização, obtendo, em 2005, o status de observador da UA, além da acreditação de sua embaixada em Addis Abeba (Özkan, 2008; MFA, 2023a).

Em consonância com essas ações, foram realizados, desde o início dos anos 2000, diversos fóruns de cooperação, reunindo a Turquia e países do continente africano. O objetivo desses encontros era potencializar as relações entre Ankara e os pares africanos, não apenas assegurando maior harmonia nessas relações, mas também fomentando sua ampliação e seu aprofundamento. O primeiro desses, o I Fórum de Cooperação Turquia-África, ocorreu em 2008, em Istambul, contando com a participação de representantes do alto escalão de cinquenta países africanos (Özkan, 2008). Como fruto desse encontro, foram adotados dois documentos a "Declaração de Istambul sobre a Parceria Turquia-África para um Futuro Comum" e o seu anexo, o "Quadro de Cooperação para a Parceria Turquia-África: Cooperação e Solidariedade", estabelecendo um conjunto de áreas prioritárias para cooperação, dentre as quais a cooperação intergovernamental, a cooperação em comércio e investimento, a cooperação em infraestrutura, energia e transporte, a cooperação em saúde, e a cooperação em paz e segurança (MFA, 2023a).

O segundo Fórum de Cooperação Turquia-África ocorreu em 2014, em Malabo, na Guiné Equatorial, e contou com a participação de representantes de mais de 40 países africanos, dentre os quais Mauritânia, Etiópia, Argélia, Nigéria, África do Sul, Senegal, Líbia, Zimbábue, Quênia, Gana, Chade, República Democrática do Congo e Egito (Çelik, 2014). Assim como o primeiro, este encontro estabeleceu e acrescentou setores de cooperação estratégica entre a Turquia e a África, como cultura, educação, capacitação de jovens, segurança e paz, energia, transportes e transferência de tecnologia (MFA, 2023a). Além disso, a Declaração Final do encontro, intitulada "Novo Modelo de Parceria para o Reforço da Integração e Desenvolvimento Sustentável" (UA, 2014), destacava a necessidade de incremento nos investimentos externos diretos e de fortalecimento de uma cooperação voltada para o desenvolvimento econômico (Monié, 2022).

Em 2021, o III Fórum de Cooperação Turquia-África ocorreu em Istambul, e contou com a participação de 38 países africanos, sendo 13 representados por chefes de Estado e dois por primeiros-ministros, além de uma delegação da União Africana (Özkan & Orakçi, 2022).

O objetivo deste último encontro foi o reforço das atividades que já estavam sendo desenvolvidas, bem como a consolidação da cooperação comercial, econômica, securitária e cultural (Monié, 2022). No entanto, o foco do evento de 2021 foi a atividade econômica, principalmente aquela centrada nas atividades de negócios. Dessa forma, o Fórum contou com discussões sobre o setor industrial e tecnológico e sobre as atividades da iniciativa privada. A novidade trazida no Fórum de 2021 foi a preocupação e o compromisso da Turquia e dos países africanos em estabelecer diálogo e cooperação técnica entre governos e também entre as Comunidades Econômicas Regionais do continente africano (Republic of Turkey Ministry of Trade (RTMT) & African Union (AU), 2021).

Esse esforço de projeção da Turquia enquanto uma Potência Média, no plano regional e internacional, também contou, desde o início do século XXI, com a participação de diversas agências estatais do país, atuando sobretudo nos campos de desenvolvimento e de auxílio humanitário. Dentre essas, destacam-se a Agência Turca de Cooperação Internacional e Desenvolvimento (Turkish International Cooperation and Development Agency, TIKA) e a Direção de Assuntos Religiosos da Turquia (Directorate for Religious Affairs of Turkey, Diyanet). A TIKA é a agência oficial para a Cooperação para o Desenvolvimento do governo turco, sendo responsável por fornecer assistência ao desenvolvimento dos parceiros da Turquia por meio de projetos técnicos e atividades humanitárias. Seu primeiro escritório no continente africano foi aberto em 2005, em Adis Abeba, sendo seguido por outros dois em Cartum, em 2006, e Dakar, em 2007 (Özkan & Akgün, 2010).

Desde então, não apenas o volume de projetos desenvolvidos pela Agência aumentou, como também o número de escritórios no continente, que em 2023 já eram 222 (Turkish International Cooperation and Development Agency - TIKA, 2023). De acordo com o Relatório de 2021 do Fórum Turquia-África, a TIKA atualmente está à frente, no continente africano, de 322 projetos de educação, 196 projetos na área da saúde e 73 projetos de água e saneamento (RTMT & AU, 2021). Outros projetos envolvem iniciativas no setor da agricultura e da agricultura familiar, moradia, conservação de patrimônios culturais, infraestrutura civil e administrativa e infraestrutura econômica e produtiva (RTMT & AU, 2021).

Já a Diyanet tem sido responsável por promover a abertura de escolas religiosas em diversos países do continente africano, além de organizar encontros entre lideranças religiosas africanas e seus pares turcos (Donelli, 2021a). O primeiro desses, o Encontro de Líderes Religiosos dos Países e Sociedades Muçulmanas do Continente Africano, foi realizado em 2006, em Istambul, e reuniu representantes de mais de vinte países africanos (Özkan & Akgün, 2010). Além destas, outras agências e ONG's turcas também passaram a atuar (ou incrementaram sua atuação) no continente africano, com destaque para a Turkish Maarif Foundation (TMF), integrada ao setor de educação, com mais de 144 centros educacionais espalhados pelos países africanos, a Yunus Emre Foundation (YEF), atuante no setor de ensino da cultura e língua turca, presente em oito países africanos3 (RTMT & AU, 2021).

Ainda no setor da educação, outro elemento importante no esforço de estreitamento dos laços político-diplomáticos da Turquia com o continente africano foi o incremento do número de bolsas de estudo, financiadas pelo governo turco e concedidas a estudantes africanos, principalmente vindos da porção ocidental do continente. Para além de bolsas de graduação e pós-graduação em Istambul e Ankara, o governo turco passou a oferecer crescentemente bolsas para estudantes africanos de ensino básico, para que eles estudassem em escolas turcas financiadas no próprio território dos países africanos (Binaté, 2021). Conforme Binaté (2021), Costa do Marfim, Burkina-Faso e Senegal foram os países que ganharam destaque nas relações turco-africanas para a promoção da educação a partir de 2003. No caso da Costa do Marfim, destaca-se a criação do Grupo de Estudos em Matemática com bolsas financiadas pela Turquia, chamado Şafak d'Abidjan. O governo turco, por meio deste grupo de estudos, promoveu a Olimpíada dos Jovens Matemáticos e concedeu bolsas de estudos na Turquia aos alunos destaque do evento. Diante disso, o Şafak d'Abidjan passou a ser um centro onde estudantes da Costa do Marfim passaram a ter a possibilidade de concluir os estudos na Turquia, ou até mesmo iniciar a graduação e a pós-graduação (Binaté, 2021).

Como resultado desse esforço de aproximação da Turquia com a África, o país logrou consolidar uma posição de destaque junto ao continente. Nesse sentido, em 2008, a Turquia passou a integrar o Banco Africano de Desenvolvimento como membro não regional (Donelli, 2018) e foi declarada, no âmbito da União Africana, como parceira estratégica do continente (Özkan, 2008). Além disso, o país também ganhou o status de observador em diversas Comunidades Econômicas Regionais (REC) africanas, como a CEDEAO e a Comunidade da África Oriental (EAC), em 2010, a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) e o Mercado Comum para a África Oriental e Austral (COMESA), em 2012 (Dodo, 2016). Igualmente, como resultado dessa aproximação, em 2008, a Turquia contou com o apoio de 50 países africanos em sua candidatura a um assento não permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas - sendo eleita, em grande medida, por conta desse apoio, que representou cerca de 30% do total de votos recebidos (Korkut & Civelekoglu, 2012).

No plano multilateral e internacional, as relações com o continente africano são relevantes para a Turquia, ao passo que o país consegue apoio desses atores em órgãos multilaterais relevantes. Conforme Özkan (2011), a participação e o engajamento turco em organizações multilaterais fazem parte da estratégia da política externa nos anos 2000. Nesse sentido, a posição ativa da Turquia no G-20, bem como o status de membro não permanente no Conselho de Segurança entre os anos de 2008 e 2010, como já mencionado, são resultados diretos dessa maior aproximação e do estreitamento dos laços com os países do continente africano (Özkan, 2011).

A DIMENSÃO ECONÔMICO-COMERCIAL DAS RELAÇÕES TURCO-AFRICANAS

Os esforços de aproximação e estreitamento dos laços político-econômicos turcos com a África foram acompanhados por um incremento nas relações econômico-comerciais entre a Turquia e o continente africano, os quais se mostraram de grande relevância para que o país conseguisse expandir a sua influência econômica na região. Como destaca Tepecikliogu (2017), a política externa executada por Ahmet Davutoğlu teria na busca pela cooperação econômica com o maior número de parceiros possível um de seus importantes pilares, sendo essa diversificação entendida como uma forma de proporcionar uma projeção global para a Turquia.

Nesse contexto, a partir do início do século XXI, a África, dotada de um expressivo mercado consumidor potencial, bem como de importantes reservas de recursos naturais, passou a ser entendida crescentemente como um espaço potencial para a cooperação turca, especialmente em termos de transferências tecnológicas, relações comerciais e de oportunidades de investimentos. Com isso, diversas empresas turcas passaram a investir no continente, gerando um aumento substancial tanto no número de empresas turcas instaladas em países africanos quanto no valor total investido - que saltou de cerca de US$ 400 milhões, em 2007, para US$ 5 bilhões, em 2013, e para US$ 6,2 bilhões em 2016 (Tepecikliogu, 2017). Destaca-se, nesse sentido, a atuação, no continente, de empresas turcas do setor de infraestrutura (Monié, 2022).

Em grande medida, esse incremento contou com significativo apoio do governo turco. Nesse sentido, é importante destacar que em todas as viagens realizadas por Erdoğan aos países do continente africano, tanto enquanto Primeiro-ministro, quanto enquanto Presidente, ele foi acompanhado regularmente por empresários turcos, com diversos acordos - de comércio, investimento, etc. - sendo assinados nessas ocasiões (Monié, 2022). Além disso, em 2016, a Turquia organizou o primeiro Fórum Econômico e Empresarial Turquia-África, que reuniu, para além de 50 chefes de Estado e de governo, mais de 3.000 empresários dos países africanos e da Turquia. O evento, que teve sua segunda edição em 2018, tinha como principal objetivo contribuir para potencializar as relações comerciais e de investimento entre a Turquia e os países africanos (e o continente, em seu conjunto), além de incrementar a presença de empresas turcas na África (Donelli, 2021b). Nele, o governo turco ainda se comprometeu a investir no Departamento de Comércio e Indústria da União Africana, apoiando as decisões do órgão a nível regional e internacional (MFA, 2023a).

Conforme Monié (2022), a presença econômica da Turquia na África crescentemente passou a se dar, também, por meio de empresas turcas que incentivam a criação de empregos e investem em infraestrutura e em serviços, principalmente da construção civil e de infraestrutura em transportes (Monié, 2022). No setor de infraestrutura, destaca-se o envio de engenheiros turcos que, atuando em conjunto com trabalhadores somalis, criaram projetos de construção de estradas e ruas asfaltadas, tanto na capital do país, Mogadís-cio, quanto entre Mogadíscio e outras regiões (Yusuf et al., 2022). Além disso, no que diz respeito à indústria e à venda de produtos, o continente africano tem servido como um extenso mercado para os produtos manufaturados turcos, que por vezes possuem um preço mais competitivo do que os produtos europeus e uma qualidade melhor do que aquela dos produtos chineses. Em contrapartida, a Turquia se beneficiaria da compra de commodities fornecidas pelos atores africanos, necessárias, entre outros, como insumos para a sua produção industrial (Monié, 2022).

As iniciativas adotadas pela Turquia na esfera econômica, em conjunto com o incremento dos laços políticos verificado desde o início do século, tiveram como resultado um aumento significativo das trocas comerciais entre o país e os pares do continente africano. Enquanto em 2003 o volume de trocas comerciais entre o conjunto de países da África e a Turquia foi de cerca de US$ 3,5 bilhões, em um período de uma década este experimentou um crescimento de mais de 500%, atingindo, em 2013, a marca de cerca de US$ 21 bilhões. Após uma breve queda, entre 2014 e 2016, quando o volume de comércio foi aproximadamente de US$ 17 bilhões, essas relações retomaram um ritmo acelerado de crescimento, ultrapassando a marca de US$ 33 bilhões, em 2022 (International Trade Centre (ITC), 2023). Com isso, no período 2003-2022, as relações comerciais entre a Turquia e o continente africano passaram por um incremento de mais de 850%.

Esse crescimento foi resultado de um incremento sustentado tanto das importações turcas de produtos africanos quanto das exportações da Turquia para o continente. Nesse sentido, enquanto em 2003, a Turquia importou cerca de US$ 1,67 bilhões em produtos exportados pelos países africanos, em 2014, esse número atingiu a marca de aproximadamente US$ 8,6 bilhões e, em 2022, após um período de retração experimentado entre 2014 e 2016, alcançou a marca de US$10,5 bilhões (ITC, 2023). As exportações turcas para os países da África, por sua vez, seguiram uma tendência semelhante, ainda que com um crescimento mais expressivo. Enquanto em 2003, um total de aproximadamente US$1,79 bilhões em produtos turcos foram exportados para o continente africano, em 2014, o total foi de aproximadamente US$14 bilhões, um crescimento de cerca de 680%. Entre 2014 e 2017, as exportações turcas para a África experimentaram uma retração - menos acentuada do que a experimentada pelas importações - retomando a partir daí um crescimento bastante acelerado, atingindo a marca de aproximadamente US$ 22,6 bilhões, em 2022 (ITC, 2023).

Entre os países do continente, cinco se destacam como os principais parceiros comerciais turcos ao longo do século XXI, tanto em termos de suas importações da Turquia quanto de suas exportações para o país: Egito, Marrocos, Argélia, Líbia e África do Sul (ITC, 2023). É interessante perceber, todavia, que enquanto estes cinco mantiveram, entre 2003 e 2022, relativa estabilidade no seu peso nas exportações do continente para a Turquia - oscilando entre cerca de 75% e cerca de 85% do total -, em termo das exportações turcas para o continente, é possível perceber uma diminuição relativa do peso desses atores, que em 2003 eram o destino de cerca de 74% das exportações turcas para a África e em 2022 cerca de 59%, indicando, assim, uma diversificação das parcerias comerciais da Turquia no continente.

A despeito do significativo crescimento das relações comerciais turcas com o continente africano, é importante ressaltar que estas ainda são relativamente limitadas. Se tomarmos o acumulado de trocas comerciais entre 2003 e 2022, a Turquia fica apenas em 14° lugar no ranking de parceiros comerciais do continente africano, atrás de China, EUA, França, Itália, Índia, Espanha, Alemanha, África do Sul, Holanda, Reino Unido, Emirados Árabes Unidos, Japão e Brasil. Todavia, é importante destacar que ao longo desse mesmo período, o crescimento experimentado pelas trocas comerciais turcas com o continente, de mais de 850%, ficou atrás apenas daquele experimentado pela China (quase 1.400%) e pelos Emirados Árabes Unidos (de cerca de 940%) - valores muito superiores ao crescimento das trocas da França (106,2%), dos EUA (70,3%) e do Reino Unido (56,8%) com a África, por exemplo (ITC, 2023). Vale ressaltar, todavia, que o crescimento sustentado das trocas comerciais turcas com a África garantiu que, a partir de 2014, a Turquia passasse, em termos anuais, a apresentar trocas comerciais mais volumosas do que outros parceiros africanos, ultrapassando assim o Brasil, em 2015, o Japão, em 2016, o Reino Unido, em 2020, e os Emirados Árabes Unidos, em 2022, o que garantiu à Turquia, naquele ano, o posto de 10° maior parceiro comercial africano (ITC, 2023).

Entre os esforços de fortalecimento dos laços econômico-comerciais turco-africanos no século XXI, destacam-se não apenas o apoio financeiro dado pela Turquia à criação da Zona de Comércio Livre Continental Africana (MFA, 2023a), mas também os acordos de comércio e cooperação econômica entre Ankara e 45 países africanos, a promoção recíproca e proteção de acordos de investimento com 26 Estados do continente e a eliminação da dupla tributação com 11 países, a fim de estabelecer contratos sólidos para o estabelecimento das relações econômicas entre os Estados (MFA, 2023a). Destaca-se, ainda, a criação, em 2016, da plataforma on-line " Turkey-Africa Agricultural Cooperation Platform", juntamente com a plataforma dos Fóruns, que objetivou disseminar informações sobre dados e projetos desenvolvidos no setor da agricultura (Özkan & Orakçi, 2022). O site foi o principal resultado do encontro de ministros da agricultura da Turquia e de países africanos para discutir a cooperação neste eixo, servindo como uma base de dados para a cooperação técnica nos setores de produção de alimentos.

No setor de energia, destacam-se os incentivos dados pelos bancos turcos para investimento em infraestrutura de energia no continente (MFA, 2023a). Nesse sentido, destacam-se não apenas os investimentos realizados em países como a Nigéria e a Argélia, os quais são importantes exportadores de petróleo e gás natural para a Turquia, mas também a prioridade dada pelo Ministério de Energia e Recursos Naturais do governo turco à realização de investimentos da empresa Turkish Petroleum Corporation (TPAO) para a extração de petróleo em Angola (Tepecikliogu, 2017).

Vale ressaltar, ainda, que desde o início do século XXI, acompanhando o estreitamento dos laços políticos e econômicos, realizou-se um aumento substancial no número de rotas e destinos no continente africano operados pela companhia aérea Turkish Airlines. No início da década de 2000, a companhia voava majoritariamente para cidades da região do norte da África - tendo como destinos o Cairo, no Egito, Casablanca, no Marrocos, Túnis, na Tunísia, Argel, na Argélia e Trípoli, na Líbia -, tendo como único destino ao Sul do continente a cidade de Joanesburgo, na África do Sul (Turkish Airlines, 2005).

Já na década de 2010, a companhia apresentou um salto no número de cidades para as quais passou a voar, com diversas capitais africanas passando a integrar as rotas da empresa turca. Segundo o relatório da empresa do ano de 2015, para além dos destinos citados anteriormente, foram adicionadas às rotas de voo, cidades em outras regiões do continente, principalmente na região ocidental e oriental. Foram incorporados aos destinos da Turkish Airlines Ruanda, Chade, Mali, República Democrática do Congo, Camarões, Costa do Marfim, Mauritânia, Burkina-Faso, Niger, Tanzânia, Etiópia, Eritreia e Somália. Além destes destinos, foram adicionados novos da porção austral do continente, como Moçambique (Turkish Airlines, 2015).

Segundo o relatório do ano de 2022, atualmente a empresa voa para 62 destinos no continente africano. Para a Ásia, este número é de 46, enquanto que, para o Oriente Médio, o número caiu para 37 (Turkish Airlines, 2022). Este aumento no número de rotas para países africanos reflete um incremento não apenas das relações (econômicas, de cooperação, políticas, etc.) turcas com a África, mas também da importância atribuída pela política externa turca para o continente, bem como de sua busca por expandir ainda mais sua presença e influência na África.

A DIMENSÃO MILITAR-SECURITÁRIA DAS RELAÇÕES TURCO-AFRICANAS

Além do incremento dos laços nas dimensões político-diplomáticas e econômico-comerciais, o século XXI também tem sido marcado por um incremento substancial da atuação turca no continente africano também nas dimensões securitária e militar. A principal ação turca, nesse sentido, materializou-se na interação de Ankara com a Somália. Em 2011, diante de um cenário em que o país africano experimentava uma forte seca, que arrasou seu território, intensificando ainda mais a fome e o caos experimentados no país, o governo turco foi o primeiro país a enviar recursos e ajuda humanitária à Somália (Dahir & Cismaan, 2021).

Naquele mesmo ano, o então Primeiro-ministro Erdoğan, acompanhado de uma delegação de quatro ministros e de membros da elite turca, realizou uma visita ao país africano - a primeira de um líder não africano em quase duas décadas. Como resultado dessa visita, naquele mesmo ano, a Embaixada turca em Mogadíscio foi reaberta, contribuindo para que houvesse um fortalecimento progressivo nas relações entre os dois países (Özkan & Orakci, 2015). Por um lado, essa aproximação progressiva foi fortalecida também pela liderança do governo turco na realização, no âmbito da Organização para a Cooperação Islâmica, de rodadas de discussão sobre a situação somali, mediando acordos entre representantes da Somália e de Somaliland, em questões como segurança, combate à pirataria e pesca ilegal (Shinn, 2015). Por outro, ela possibilitou a abertura, em 2017, de uma base militar turca na capital somali, conhecida como Camp TURKSOM, estratégica para Ankara viabilizar a projeção de sua potência naval no Oceano Índico e no Mar Vermelho (Monié, 2022). Nesse mesmo contexto, a Turquia passou também a enviar soldados turcos para a Somália, para fornecer treinamento para forças policiais e tropas do exército do país - ação que já era realizada desde 2007, com mais de 20 outros países africanos (Siradağ, 2018).

O sucesso na aproximação com a Somália contribuiu para fortalecer a posição de protagonismo da Turquia em questões securitárias no continente africano. Nesse contexto, o governo de Ankara tem fortalecido sua cooperação em áreas como o combate ao terrorismo,4 a ajuda humanitária e o fornecimento de equipamentos militares (MFA, 2023b), pautandose por quatro aspectos principais: a busca por novos parceiros estratégicos do ponto de vista diplomático; a busca por novos mercados para os produtos das empresas turcas do setor de defesa; a expansão e desenvolvimento da indústria de defesa turca; e os treinamentos militares (Yaşar, 2022).

Com relação ao comércio de armamentos e ao desenvolvimento da Indústria de Defesa, entre 2003 e 2022, a Turquia vendeu aproximadamente US$ 261 milhões em armas para 19 países africanos (Burkina Faso, Chade, Costa do Marfim, Djibuti, Egito, Etiópia, Gana, Líbia, Mali, Mauritânia, Marrocos, Níger, Nigéria, Ruanda, Senegal, Somália, Togo, Tunísia e Uganda) (Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI, 2023). O gráfico 6 indica o volume de armamentos vendido por ano pela Turquia ao continente africano.

De acordo com Yaşar (2022), diversos países africanos firmaram acordos dentro do escopo de cooperação na Indústria de Defesa. Dentre eles estão Nigéria, Etiópia, Gana, Mali, Argélia, Djibouti, Senegal, Tanzânia, Sudão, Egito, Uganda, República Democrática do Congo, Guiné, Somália, Quênia, África do Sul, Marrocos, Tunísia e Líbia. No gráfico 7, observa-se a venda de armamentos turcos por países, de 2003 a 2022, com destaque para a Tunísia e para a Nigéria (Yaşar, 2022).

Como fica claro pela análise do Gráfico 6, houve um aumento significativo na venda de armamentos da Turquia para países africanos a partir de meados da década de 2010. Esse aumento no volume de vendas de armas e equipamentos, ainda que menor se comparado às vendas chinesas e russas, por exemplo, representa uma tentativa tanto do governo turco quanto das empresas do país, de incorporar este mercado consumidor, criando oportunidades de negócios e de expansão industrial em um mercado pouco explorado pela Turquia ao longo da história (Kitio, 2020). Além disso, a venda de equipamentos tem sido acompanhada de treinamentos, o que denotaria uma ideia de desenvolvimento e aprendizado mútuo, e não apenas da venda dos produtos em si (Kitio, 2020).

Conforme Yaşar (2022), também merecem destaque em termos das relações na dimensão securitária, o Níger, com o qual a Turquia estabeleceu acordos militares, o Marrocos e, novamente a Tunísia, com a venda de drones e de Veículos Aéreos Não Tripulados (UAVs). Donelli (2022) chama atenção para os drones turcos que se mostraram bastante eficientes e possuíam um preço atrativo. Dentre os principais países que adquiriram estes equipamentos estavam a Nigéria, Ruanda, a Etiópia e Angola (Donelli, 2022). Além destes, dentre os principais produtos de defesa e segurança exportados para a África estão os veículos blindados, eletro-ópticos, sistemas de sensores, sistemas de vigilância e espingardas (Yaşar, 2022).

Os programas de treinamento de oficiais africanos mostraram-se bastante relevantes à Turquia e aos países africanos. Por meio destes acordos de treinamento dos exércitos, foram feitos acordos de cooperação não apenas no campo militar, mas também nos campos científico, tecnológico, sanitário, cultural e de desenvolvimento humano (Kitio, 2020). Foi o caso dos acordos de cooperação de transferência de tecnologia de defesa, relevantes para os países africanos (Yaşar, 2022). Conforme Yaşar (2022), além da Tunísia e da Somália, a Turquia firmou, a partir da década de 2010, acordos de cooperação em defesa e transferência de tecnologia com países como Benin, Chade, República Democrática do Congo, Djibouti, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Quênia, Líbia, Mali, Níger, Nigéria, Senegal e Uganda.

Segundo Pakin-Albayrakoglu (2016), os treinamentos militares turcos de oficiais africanos se deram, principalmente, a partir de 2007, quando 500 soldados de Gâmbia viajaram à Turquia para receber treinamento militar. A partir daquele ano, juntaram-se oficiais de países como Costa do Marfim, República Democrática do Congo, Djibuti, Etiópia, Líbia, Mali, Nigéria, Sudão, Tanzânia, Tunísia e Zâmbia (Pakin-Albayrakoglu, 2016). Conforme o Ministério das Relações Exteriores da Turquia, entre 2017 e 2018, 290 oficiais africanos receberam treinamento em território turco (MFA, 2023a). Os treinamentos militares turcos se expandiram significativamente pelo continente, contando com centros especializados e escolas militares em países como Gana e Senegal. Para além de treinamentos no campo de segurança e defesa, estes centros passaram a oferecer cursos de idioma turco e combate ao terrorismo, compreendendo estratégias de combate, discussões sobre terrorismo no cyberespaço e na mídia, e sobre infraestrutura de proteção contra ataques terroristas (Kitio, 2020).

No que diz respeito à diplomacia de defesa e segurança, estabelecida entre a Turquia e os países africanos, Siradağ (2018) e Yaşar (2022) destacam as operações navais turcas na costa do continente. No ano de 2009, a força naval turca enviou 20 navios ao Golfo de Áden, na Somália, para combater a pirataria na região. Segundo Siradağ (2018), estas atividades diminuíram em grande nível, principalmente a partir de 2017. Em 2014, a Missão Naval Turca de Navios "Barbaros", composta por duas fragatas e um navio petroleiro da Força Naval Turca, navegou por quase todo o continente, visitando 25 portos africanos (Yaşar, 2022). Dessa forma, a Turquia tem estabelecido uma política de segurança marítima tanto no mediterrâneo quanto nos mares do continente africano (Siradağ, 2018).

A participação expressiva da Turquia em missões de paz das Nações Unidas no continente africano, a partir do envio de armamentos e de tropas, ocupa um espaço de bastante relevância nas relações entre a Turquia e a África. Recentemente, o país contribuiu ativamente com as missões na República Democrática do Congo, em Darfur (UNAMID), na Libéria (UNMIL), no Sudão do Sul (UNMISS) e na Costa do Marfim (UNOCI) (Dodo, 2016). Ankara esteve em papéis de liderança e mediação em diversos conflitos no continente africano, na busca por soluções e resoluções de controvérsias. Como exemplo, em 21 de março de 2010, no Cairo, a Turquia copresidiu, juntamente com o Egito, uma conferência internacional de doadores, sob a égide da Organização da Cooperação Islâmica, para a reconstrução e desenvolvimento de Darfur, tendo sido aprovado um investimento de US$70 milhões para a reconstrução da região (Shinn, 2015; Dodo, 2016). Ainda, nota-se a extensa presença turca no auxílio humanitário direto a populações de países em conflito, com destaque para a Somália (Siradağ, 2018).

Além da questão somali e sudanesa, diversos acordos de cooperação foram assinados com a Líbia e com a Tunísia, a fim de que a Turquia pudesse ter maior presença na região do Mediterrâneo. No caso da Tunísia, o governo turco ofereceu, a partir da Escola de Treinamento das forças armadas turcas, treinamentos militares para oficiais tunisianos (Kitio, 2020). Já no caso da Líbia, a Turquia passou a apoiar militarmente, em 2011, o exército líbio do Governo do Acordo Nacional (GNA), reconhecido pela ONU como o governo legítimo do país, com o objetivo de garantir acesso a recursos naturais, como o petróleo e o gás natural e, sobretudo, maior influência e controle nesta região do mar Mediterrâneo (Demircan, 2020). A Turquia visa garantir a possibilidade de explorar os recursos naturais descobertos nessa região do Mediterrâneo, a qual também é visada também pela Grécia e pelo Egito, que entraram em acordo para explorar a região, de acordo com suas fronteiras marítimas. A Turquia, dessa forma, passou a apoiar e a assinar acordos com o GNA, na tentativa de disputar com a Grécia este espaço no Mediterrâneo (Demircan, 2020).

Em linhas gerais, pode-se considerar que a expansão do eixo securitário da política externa turca ao continente africano foi intensificada, em grande medida, em função da ampliação das capacidades materiais turcas, bem como pela busca de novos parceiros estratégicos. Nesse sentido, o continente africano se tornou um mercado estratégico para os armamentos produzidos pela indústria turca, cujas empresas passaram a oferecer produtos do setor de defesa e segurança a preços muito competitivos. Vale ressaltar o crescimento no número de empresas turcas do setor de defesa que passaram a operar e/ou vender para países africanos: enquanto no ano 2000 havia 56 empresas turcas deste setor em todo o continente africano, em 2020 este número chegava a 1.500 (Yaşar, 2022).

Para Donelli (2022), a expansão turca ao continente africano no setor securitário está ligada também a fatores internos da política doméstica, principalmente após a tentativa de golpe de 2016. Conforme o autor, o crescimento do interesse das empresas turcas no mercado africano se mostrou estratégico para que Erdoğan conseguisse se manter no poder, a partir do apoio deste setor ao partido (Donelli, 2022). Já para Kitio (2020), o continente africano mostra-se como um espaço alternativo para a estratégia de projeção internacional turca, enquanto potência regional. Nesse sentido, as ações turcas, principalmente na Somália, com a instalação da base militar turca no país, bem como o treinamento de oficiais, o apoio com armamentos ao governo da Líbia e a presença na Somália, denotariam uma tentativa da Turquia de se fazer presente em uma região bastante ocupada por outros poderes, conferindo ao país o status de "garantidora" da estabilidade e mediadora de conflitos, bem como um poder alternativo, em regiões que já contariam com a presença de outras grandes potências (Kitio, 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as transformações nas relações entre a Turquia e o continente africano, no século XXI, bem como os elementos que caracterizam as Potências Regionais do mundo pós-Guerra Fria, é possível compreender o estreitamento das relações turco-africanas a partir da reformulação da política externa turca durante o período de governo do AKP, que buscou dar múltiplas dimensões às relações políticas, econômicas e securitárias do país. Antes da chegada do partido ao poder, em 2003, a Política Externa Turca voltava-se quase que inteiramente ao bloco ocidental. Durante a Guerra Fria, isso se percebeu no estreitamento das relações entre a Turquia e os países da OTAN, considerando a lógica do dilema de segurança do período.

O direcionamento da Política Externa turca é intensamente influenciado pelos movimentos e dinâmicas da política doméstica do país. Num primeiro momento, enquanto o AKP ainda procurava se consolidar no poder, considerando a sua inclinação política neo-otomana e fortemente simpatizante com as instituições muçulmanas turcas, a Política Externa turca se apoiava nas relações com o Ocidente, principalmente com a União Europeia. Isso se deveu à necessidade do governo de estabilizar as tensões políticas internas com os partidos de inclinação secular. A partir de 2005, o AKP passou a buscar novas possibilidades de relações econômicas, diplomáticas e securitárias, procurando reconstruir a liderança da Turquia em regiões de grande proximidade política e cultural com o país, nas quais poderia, de fato, exercer alguma liderança. É o caso, por exemplo, dos países do Oriente Médio. Este redirecionamento é tratado na literatura como uma reformulação da Política Externa, baseada na estratégia formulada por Ahmet Davutoğlu, ex-Ministro de Relações Exteriores do país.

Davutoğlu buscou trazer maior autonomia para as relações exteriores turcas, principalmente no que diz respeito ao comércio e à economia. A Turquia é um país com uma população relativamente grande, um território extenso e uma economia com significativo nível de industrialização. Entretanto, o país não consegue competir com a indústria europeia e norte-americana, o que impõe a necessidade de busca por mercados consumidores dos produtos turcos, bem como por commodities e matérias-primas - espaço que, no século XXI, foi crescentemente ocupado pelo continente africano.

Isso se refletiu, de maneira geral, no crescimento da relevância da Turquia enquanto parceiro comercial dos países africanos, ainda que o país fique abaixo de outros parceiros tradicionais (como os EUA) ou "emergentes" (como a China) com relação ao volume de investimentos e de trocas comerciais. Entretanto, como visto, a Turquia, ao longo do século XXI, passou a galgar posições nos rankings de principais parceiros comerciais do continente, ultrapassando inclusive parceiros de maior tradição, como o Brasil.

De maneira geral, o eixo securitário das relações turco-africanas também ganhou maior destaque ao longo do século XXI. Para além da venda de equipamentos militares, notou-se o crescimento da presença militar turca no continente africano, principalmente com relação ao auxílio humanitário a países em situação de conflito armado, com notório destaque para a região do Chifre da África. O treinamento militar de oficiais africanos também se mostrou bastante importante, bem como os treinamentos navais da Turquia na costa do continente e o combate ao terrorismo. Isso garante um espaço e uma oportunidade para a Turquia expandir tanto a sua influência, quanto as suas capacidades materiais, algo que se torna mais difícil nas interações com os países da OTAN, por exemplo. Além disso, a expansão da cooperação securitária turca com a África indica que, embora a Turquia não seja uma potência militar global, o país vem conseguindo exercer influência política e militar na região, contando com parceiros regionais estratégicos. A ajuda humanitária da Turquia aos países africanos também contribui, em certa medida, para alimentar a ideia basilar das relações turco-africanas. Através de ONG's e de agências como a TIKA, bem como da participação e liderança em Missões de Paz, a Turquia consegue criar uma imagem de si própria bastante positiva a nível regional.

Considerando a pergunta inicial proposta e o objetivo deste trabalho, pode-se concluir que o objetivo da Turquia ao fortalecer sua presença no continente africano é a busca por projeção e liderança a nível regional, dentro do conceito teórico apresentado neste estudo e dentro dos aspectos que foram analisados. Isso pôde ser observado a partir da pesquisa acerca das iniciativas turcas nos eixos propostos, que demonstrou um real interesse do Estado turco, sob a liderança do AKP, de reconstruir e consolidar o papel da Turquia enquanto uma potência regional no âmbito econômico, político e, sobretudo, securitário. Esse direcionamento também está ligado aos objetivos internos do Partido, de garantir uma base aliada para seus projetos e estabilizar a disputa por poder.

Em certa medida, o exercício deste papel de liderança foi legitimado pelos países africanos, principalmente por aqueles que possuem capacidades reduzidas e não se destacam em termos de poder em suas respectivas regiões, como é o caso da Somália e de alguns Estados da África Subsaariana, por exemplo. Nesse contexto, o reconhecimento externo da condição de Potência Regional recebido pela Turquia - sobretudo por parte de atores africanos mas, também, de outros atores internacionais que percebem nessa crescente projeção para o continente uma demonstração da capacidade destacada turca - contribui para consolidar tal reconhecimento também em sua própria região, fortalecendo a busca turca por expandir a sua influência e a sua participação a nível global, o que se verifica cada vez mais em suas interações com outras potências, tanto médias quanto grandes, como o Brasil, a Rússia e a China.


NOTAS

1 Os países visitados por Erdoğan foram Marrocos (2005, 2013), Sudão (2006, 2017), Egito (2006, 2009, 2011, 2012), Argélia (2006, 2013, 2014, 2018, 2020), Etiópia (2005, 2007, 2015), Somália (2011, 2015, 2016), Tunísia (2011, 2013, 2017), África do Sul (2005, 2011, 2018), Gabão (2013), Senegal (2013, 2016, 2020, 2022), Guiné Equatorial (2014), Níger (2014), Djibouti (2015), Costa do Marfim (2016), Nigéria (2016, 2021), Gana (2016), Guiné (2016), Uganda (2016), Quênia (2016), Tanzânia (2017), Moçambique (2017), Madagascar (2017), Chade (2017), Mauritânia (2018), Mali (2018), Zâmbia (2018), Gâmbia (2020), Angola (2021), Togo (2021), Líbia (2021), República Democrática do Congo (2022) (MFA, 2023).
2 Gâmbia, Senegal, Guiné, Níger, Camarões, Chade, Sudão, Sudão do Sul, Djibuti, Etiópia, Somália, Quênia, Uganda, Líbia, Egito, Argélia, Tunísia, Tanzânia, Comores, Namíbia, África do Sul, Moçambique (TIKA, 2023).
3 África do Sul, Argélia, Egito, Marrocos, Senegal, Somália, Sudão e Tunísia.
4 Nesse contexto, em 2018, frente aos desafios securitários encontrados pelos países do Grupo G5 do Sahel, Ankara anunciou que disponibilizaria US$ 5 milhões para fomentar a cooperação entre os Estados da África Ocidental nas áreas de desenvolvimento e segurança (Siradağ, 2018).


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