10.18601/01207555.n32.12
SOBRE ÓCIO, LAZER E TEMPO LIVRE: DIRIMINDO IMPRECISÕES1
ABOUT IDLENESS, LEISURE AND FREE TIME: RESOLVING INACCURACIES
SOBRE OCIO AUTOTÉLICO, OCIO Y TIEMPO LIBRE: ACLARANDO INEXACTITUDES
Gustavo Fonseca Halley
Maestro en Psicología
Miembro del Laboratorio OTIUM, del Programa de
Pos-graduados en Psicología de UNIFOR
Brasil
[gustavohalley@gmail.com]
Marcos Gonçalves Maciel
Postdoctor en Estudios de Ocio por la Universidad de Deusto
Profesor de la Universidade do Estado de Minas Gerais
Brasil
[marcos.maciel@uemg.br]
1 Para citar el artículo: F onseca, G. & Gonçalves, M. (2023). Sobre ócio, lazer e tempo livre: dirimindo imprecisões. Turismo y Sociedad, XXXII, 301-317. DOI: https://doi.org/10.18601/01207555.n32.12
Fecha de recepción: 2 de julio de 2020
Fecha de modificación: 9 de abril de 2021
Fecha de aceptación: 3 de mayo de 2021
Resumo
Na Contemporaneidade, as perspectivas sobre ócio, lazer e tempo livre, quer no senso comum, quer no contexto acadêmico, ainda apresentam imprecisões e ambiguidades. Em face do exposto, este trabalho tem por objetivo analisar especificidades das perspectivas de ócio, de lazer e do tempo livre no contexto brasileiro. Para tanto, foi realizada uma pesquisa qualitativa, exploratória, de cunho bibliográfico, tendo por base a revisão narrativa da literatura. As análises levadas a efeito indicam que o ócio é um fenômeno atemporal, subjetivo e autocondicionado. O lazer, por seu turno, é entendido como atividades atreladas ao tempo livre das obrigações sociais. Já o tempo livre tem sua concepção ancorada no tempo do não trabalho a partir da Revolução Industrial. As conclusões deste trabalho apontam a necessidade de um dialogismo entre os investigadores dessas abordagens, no propósito de dirimir tais imprecisões.
Palavras-chave: epistemologia, psicologia social, sociologia.
Abstract
In contemporary times, the perspectives on idleness, leisure and free time, both in common sense and in the academic context, still present inaccuracies and ambiguities. Given the above, this paper aims to analyze specificities of the perspectives of idleness, leisure and free time in Brazil. To this end, a qualitative, exploratory, bibliographic research was conducted, based on the narrative review of the literature. Analyzes indicate that idleness is a timeless, subjective and self-conditioned phenomenon. Leisure, in turn, is understood as activities linked to the free time of social obligations. Free time, on the other hand, has its conception anchored in the time of not working from the Industrial Revolution. The conclusions of this work point to the necessity of dialogism among the researchers of these approaches in order to resolve such inaccuracies.
Keywords: epistemology, social psychology, sociology.
Resumen
En los tiempos contemporáneos, las perspectivas sobre el ocio autotélico, el ocio y el tiempo libre, tanto en sentido común como en el contexto académico, aún presentan imprecisiones y ambigüedades. Dado lo anterior, este artículo tiene como objetivo analizar las especificidades de las perspectivas del ocio autotélico, el ocio y el tiempo libre en el contexto brasileño. Para ello, se realizó una investigación bibliográfica, cualitativa y exploratoria, basada en la revisión narrativa de la literatura. Los análisis indican que el ocio autotélico es un fenómeno intemporal, subjetivo y autoacondicionado. El ocio, a su vez, se entiende como actividades vinculadas al tiempo libre de las obligaciones sociales. El tiempo libre, Por otro lado, tiene su concepción anclada en el tiempo de no trabajar a partir de la Revolución Industrial. Las conclusiones de este trabajo apuntan a la necesidad de diálogo entre los investigadores de estos enfoques con el fin de resolver tales imprecisiones.
Palabras clave: epistemología, psicología social, sociologia.
1. Introdução
Os Estudos do lazer, do ócio e do tempo livre (TL), na sociedade contemporânea ocidental, são caracterizados como área interdisciplinar (Da Fonseca & Sá, 2018; Isayama, 2009), o que permite interlocuções e contribuições de diferentes concepções epistemológicas, ontológicas e teóricas (Maciel et al., 2018; Puke & Marcellino, 2013).
No cenário ibero-americano, há uma pluralidade de olhares que abordam essa temática, promovendo uma discussão de forma ampliada (Gomes et al., 2009; Gomes, 2013; Gomes & Elizalde, 2012). Nesse sentido, encontram-se cadastrados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico centenas de grupos de pesquisas das mais diferentes áreas de conhecimento, investigando os fenômenos sociais relacionados aos assuntos do lazer, do ócio e do TL no Brasil (Isayama et al., 2018; Lecuona et al., 2017; Tavares et al., 2009). A existência dessas distintas concepções é importante para o contínuo progresso do conhecimento. No entanto, incompreensões teóricas podem simplificar e/ou banalizar as especificidades de cada constructo em questão. Tal realidade faz-se presente no cenário acadêmico brasileiro ao tratar equivocadamente dessas três áreas temáticas (Aquino & Martins, 2007; Martins, 2014; Rhoden et al., 2013).
A título de elucidação, exemplificamos a falta de clareza no contexto brasileiro quanto ao entendimento de ócio e ociosidade, em virtude dos aspectos semânticos que envolvem esses termos: a) o primeiro é mais conhecido por sua influência na civilização helênica, notadamente, enquanto meio de contemplação, busca pela felicidade, sentido da vida, desenvolvimento holístico, sendo, contudo, restrito aos nobres daquela sociedade; b) o segundo termo assume concepção pejorativa, advindo da negação do ócio grego pela sociedade romana por volta do século I d. C, que cunhou o termo negotium.
Ademais, soma-se a esse fato a difusão ideológica apregoada pela Igreja Católica Romana, sobretudo, na Idade Média, atrelando o ócio à preguiça e ao pecado, de forma equivocada (Maciel, 2009). Assim, a ociosidade foi vinculada à improdutividade e à indolência. Ambas as abordagens contrapõem-se ao trabalho. Este ocupa maior centralidade na sociedade moderna, principalmente, a partir da Revolução Industrial sendo considerado como tempo produtivo e socialmente aceito para a promoção de virtudes pessoais e coletivas.
Por sua vez, fruto das reivindicações da classe trabalhadora por transformações nas condições e formas laborais, a redução das horas diárias de trabalho foi denominada como TL. Ressaltamos que o viés sociológico não contempla a percepção psicológica e filosófica relacionada ao ócio, como enfatizado por Martins (2016). Por conseguinte, o TL torna-se categoria de caráter objetivo (calculável), dissociada de outras possibilidades que o conceito pode convocar.
Já o lazer é normalmente confundido com o próprio TL, em virtude da realização de determinadas atividades socioculturais naquele período, caracterizadas como divertimento, descanso e desenvolvimento pessoal (Dumazedier, 1979). No que concerne às imprecisões que envolvem as perspectivas de ócio e lazer, podemos citar a questão linguística. Como nos lembra Martins (2016), não existe a palavra lazer no idioma espanhol. O termo que mais dele se aproxima é "ocio". Com efeito, esse vocábulo espanhol abarca várias dimensões, incluindo aspectos do que denominamos no Brasil como lazer. Já no léxico português, essas duas palavras, embora distintas, são entendidas erroneamente como sinônimas (Maciel et al., 2019).
Em face do exposto, torna-se inescapável refletir sobre a questão norteadora deste texto: Quais as distinções e proximidades existentes entre as perspectivas do lazer, do ócio e do TL? Partindo de tal questionamento, este trabalho tem por objetivo analisar especificidades das perspectivas do lazer, do ócio e do TL no contexto brasileiro. Nesse sentido, este artigo pretende discutir criticamente, de forma ampla, a temática em questão, não se limitando aos saberes hegemônicos de determinada área do conhecimento.
2. Metodologia
Este artigo, de natureza qualitativa e descritiva, tem por esteio a revisão narrativa da literatura. Tal tipo de investigação não utiliza critérios explícitos e sistemáticos no que concerne à busca e à análise crítica da literatura especializada. Desse modo, a seleção do material compulsado ocorre de maneira arbitrária, não exigindo protocolo rígido para sua elaboração (Rother, 2007). Conforme Ramos Sant'Anna e Romanowski (2014), as revisões narrativas da literatura descrevem e discutem sobre o "estado da arte", ou seja, referem-se à realização de levantamentos do que se conhece sobre determinado assunto, a partir das pesquisas realizadas em determinada área.
Tendo em vista a diversidade de correntes teóricas que debatem as perspectivas contempladas neste estudo, limitamos nossa discussão a apenas alguns dos autores cujas obras apresentam maior representatividade no Brasil. No que se refere ao ócio, optamos pelas proposituras adotadas pelo Instituto de Estudios de Ocio da Universidad de Deusto na Espanha (Cabeza, 2003; Francileudo, 2013), e dos Estudos Culturais em Portugal (Baptista, 2016; Sousa & Baptista, 2013). O primeiro compreende o ócio enquanto fenômeno psicossocial e subjetivo, pautado nas experiências, tendo como pano de fundo teórico a Psicologia Social. Por sua vez, os Estudos Culturais adotam uma abordagem interdisciplinar, estando focados na produção de significados culturais e na sua disseminação nas sociedades contemporâneas. Em relação ao ócio, compreende-o enquanto meio de resistência social às hegemonias.
No que diz respeito ao lazer, selecionamos os trabalhos que têm por arrimo o arcabouço teórico a Sociologia do Lazer, sobretudo, a partir de dois proeminentes estudiosos que contribuíram para o desenvolvimento da área no Brasil: Joffre Dumazedier, da França, e o brasileiro Nelson Carvalho Marcellino (Bertini, 2005; Dias et al., 2017; Maciel et al., 2018).
Em relação ao TL, cingimo-nos às visões teóricas calcadas em estudiosos que fazem menção às interações com as categorias de ócio ou lazer (Cabeza, 2016; Martins, 2014; Rhoden et al., 2013; Sousa & Baptista, 2013). Esses autores refletem sobre os diferentes olhares que perpassam questões relacionadas à temporalidade e/ou atemporalidade em distintos contextos sociais que permeiam o ócio e/ou o lazer. Dito de outra forma, o ócio entendido como subjetividades e não como prática, convoca a possibilidade de sua vivência em qualquer tempo social, inclusive, considerado como obrigatório, como o de trabalho, acadêmico, religioso.
3. Discussão
3.1 Sobre o ócio
Etimologicamente, o ócio provém do termo grego scholé, que significa, em linhas gerais, lugar para o desenvolvimento individual (Cabeza, 2016; Jiménez Guzmán, 2010). No entanto, sem desconsiderarmos a relevância da compreensão dos aspectos socioculturais que acompanharam o seu aperfeiçoamento filosófico e conceitual ao longo dos séculos, deter-nos-emos a discuti-lo teoricamente somente na Contemporaneidade, principalmente a partir da segunda metade do século XX.
Em nível do senso comum, o ócio é, frequentemente, associado à vadiagem, à preguiça e à indolência, adquirindo conotação pejorativa. Tal fato persiste desde a Modernidade, pois os ideais mercantilistas passaram a balizar o laço social (Francileudo & Martins, 2016), assim como o discurso religioso associou-o, erroneamente, à ideia de pecado, por concebê-lo relacionado à ociosidade (Heintzman, 2015; Maciel et al., 2019).
De acordo com o dicionário Houaiss on-line2 da língua portuguesa, o ócio e a ociosidade são entendidos como: Ócio: substantivo masculino: falta de ocupação; inação, ociosidade; cessação do trabalho; folga, repouso, quietação, vagar. Como sinônimos de ócio, esse mesmo dicionário apresenta os termos: folga e vadiagem. Por sua vez, como antônimos, são descritos os termos: ocupação e trabalho. Por ociosidade apresentam-se as seguintes informações: substantivo feminino: qualidade, estado ou condição de ocioso; inatividade. Como sinônimos, são descritos os termos: folga e vadiagem. E, como antônimos: ocupação e trabalho. Essas definições demonstram o caráter pejorativo dado, sobretudo, ao ócio. Rhoden (2008) chama atenção para o fato de, no contexto contemporâneo, a compreensão da população sobre o ócio, em geral, não ter acompanhado as teorias engendradas no contexto acadêmico.
Nos dias atuais, segundo Rhoden (2014), o ócio é compreendido no meio acadêmico de três formas: como categoria de atividade; como espaço de tempo na vida; como experiência humana. Conforme essa autora, a primeira vertente refere-se à prática de uma atividade específica, considerada social e culturalmente como lazer. A segunda, diz respeito a um tempo da vida que se opõe ao tempo de trabalho e ao tempo comprometido com obrigações sociais, familiares e políticas. Por fim, o ócio como fenômeno psicossocial é entendido como experiência humana de caráter pessoal e subjetiva.
Impende esclarecer que, ainda conforme Rhoden (2014), a última concepção não colide com as anteriores, mas as complementa, de maneira que amplia o entendimento do que pode vir a ser ócio. Neste trabalho, a fim de evitar digressões e oferecer aos leitores uma delimitação mais clara dos conceitos, valer-nos-emos da última concepção.
Nesse sentido, novas teorias têm auxiliado o desenvolvimento da compreensão do ócio no cenário acadêmico brasileiro e internacional. No Brasil, citamos as investigações feitas pelo Laboratório OTIUM - Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre, do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Psicologia da Universidade de Fortaleza - Ceará (Isayama et al., 2018). A partir do objeto de estudo oficial do referido programa - o sofrimento psíquico no sujeito, na sociedade e na cultura -, o OTIUM, por meio de pesquisas empíricas e de ensaios acadêmicos com base em um diálogo multidisciplinar, busca compreender o fenômeno subjetivo e social da elaboração do ócio, TL e do tempo de trabalho.
Por sua vez, no cenário internacional, destacamos o Instituto de Estudios de Ocio na Espanha e os Centros de Estudos Culturais em Portugal (Vargas et al., 2016). Nesse último país, a literatura especializada assenta-se nos Estudos Culturais, com destaque para as Universidades de Aveiro e do Minho. Nessa perspectiva, autores como Baptista (2013), Sousa e Baptista (2013) enfocam temas que vão desde as experiências pessoais e comunitárias de ócio até o ponto de vista dos sujeitos sobre suas vivências lúdicas e laborais. No Instituto de Estudios de Ocio, a partir da década de 1980, a perspectiva do ócio humanista tem sido desenvolvida pelo professor Manuel Cuenca Cabeza (Cabeza, 2003), destacando os aspectos axiológicos e de formação do ser humano. Essa corrente de pensamento introduzida recentemente no Brasil, a partir dos anos 2000, ainda é pouco compreendida, prevalecendo, assim, um desconhecimento geral sobre suas características epistemológicas e teóricas (Maciel et al., 2019). Segundo esses autores, naturalmente, ainda é modesta a visibilidade dessa perspectiva no meio acadêmico brasileiro.
A base conceitual do ócio humanista tem como ponto inicial a perspectiva apresentada por Aristóteles, avançando, no entanto, em seu entendimento. Nesse sentido, para Cabeza (2003), é possível distinguir uma experiência comum de uma verdadeira experiência. Enquanto a primeira relaciona-se com qualquer ação da vida cotidiana, a segunda, perpassa pelo campo das subjetividades, capaz de atribuir sentidos à existência. Em outras palavras, as experiências de ócio são aquelas para além do simples entretenimento e/ou preenchimento do TL, do prazer hedonista, mas que despertam sentidos e a satisfação, envolvendo as dimensões afetivas e cognitivas, que promovem o desenvolvimento humano.
Cabeza (2014) apresenta quatro categorias que caracterizam o ócio: exotélico, ausente, nocivo e autotélico. O ócio exotélico tem como aspecto precípuo para a sua vivência a motivação extrínseca, ou seja, configura-se como prática visando a um resultado, e não como um fim em si mesmo. Apesar dessa peculiaridade, essa expressão do ócio é uma vivência livre, legítima, e que pode propiciar satisfação decorrente do resultado obtido. O ócio ausente diz respeito à percepção pelos sujeitos da ausência de vivências livres, satisfatórias e gratuitas. Em outros termos, seria a percepção de um tempo vazio e repleto de tédio, como mero preenchimento do TL. Por sua vez, o ócio nocivo vincula-se às vivências que podem gerar consequências danosas para a pessoa ou para a sociedade assume, assim, aspectos axiológicos.
Por fim, o ócio autotélico refere-se às experiências de ócio que ocorrem de modo satisfatório, de livre escolha, sem finalidade utilitarista. Cabeza (2003) categoriza o ócio autotélico em cinco dimensões: lúdica, ambiental-ecológica, criativa, festiva e solidária. A primeira relaciona-se com o descanso e o relaxamento, visando buscar uma fuga da realidade, ao equilíbrio das funções mentais e físicas. A segunda diz respeito à satisfação decorrente do encontro com o meio ambiente, que possibilita, por exemplo, a contemplação. A terceira está ligada ao desfrute advindo de processos de reflexão, por intermédio de práticas musicais, literárias, artesanais e folclóricas. A quarta é a que mais se opõe ao tempo de trabalho, já que é sinônimo de alegria, reunião com os amigos e descanso. E, por conseguinte, a quinta categoria guarda relação com a satisfação de ajudar desinteressadamente outros sujeitos, por exemplo, em trabalhos comunitários.
Pesquisas que fazem alusão ao ócio, em seu traço autotélico (Cabeza, 2014; Francileudo, 2013; Monteagudo et al., 2013), ressaltam três atributos para caracterizar esse fenômeno: liberdade percebida, motivação intrínseca e satisfação. O primeiro atributo é um estado em que o sujeito realiza determinada atividade por livre e espontânea vontade, o que não implica, necessariamente, uma liberdade concreta. A motivação intrínseca está para além da imposição de qualquer recompensa ou ganho de natureza utilitarista, ou seja, de ações que não persigam um fim externo. O último atributo possibilita bem-estar e felicidade, à proporção que o sujeito aproxima-se de seu projeto existencial e, por conseguinte, de si mesmo.
Convém destacar que, em estudos mais atuais (Cabeza, 2014; 2018), o autor apresenta o conceito de ócio valioso. A terminologia configura-se como evolução científica do ócio humanista. Ambos os termos têm base no ócio autotélico e estão voltados ao desenvolvimento humano. O adjetivo "valioso", todavia, enfatiza o valor social benéfico decorrente das experiências de ócio e do desenvolvimento social. Para o autor, a perspectiva do ócio humanista abarca uma visão personalista do desenvolvimento humano - ainda que não exclua o componente social - ao passo que o ócio valioso focaliza o papel da comunidade, a fim de ampliar o desenvolvimento pessoal e social dos seres humanos.
3.2 Sobre o lazer
A origem etimológica do vocábulo lazer deriva da expressão latina licere que diz respeito a ser lícito, ser permitido (Gomes et al., 2009). Nessa trilha, há duas perspectivas distintas ao analisá-lo. Uma relacionada ao uso do tempo, notadamente vinculado ao não trabalho ou a uma liberdade do trabalho (Fajardo, 2002), tendo em vista as transformações das relações laborais, ocorridas na Revolução Industrial, que entendem o lazer como um TL ou liberado de obrigações sociais. A segunda, relaciona-se à vivência de uma dimensão cultural presente ao longo dos séculos (Gomes, 2014). Essa última abordagem é, segundo a referida autora, uma alternativa à "concepção hegemônica", atualmente mais aceita no Brasil - a qual se ampara nas investigações de Dumazedier e Marcellino (Bertini, 2005; Maciel et al., 2018)
Dumazedier iniciou seus estudos sobre o lazer a partir da Sociologia do Trabalho, tendo como pano de fundo, conforme Pronovost (2011), os princípios marxistas, criando também um viés funcionalista e estruturalista. Ainda segundo esse autor, Dumazedier adota uma perspectiva pautada no desenvolvimento cultural, em que são levadas em consideração as questões de valores, educação permanente e educação popular.
Ao instituir a primeira teoria do lazer, Dumazedier assume uma perspectiva funcionalista e utilitarista, embora impute ao lazer os atributos "desinteressado" e com "fim em si mesmo". Em outras palavras, para essa proposta, o lazer visa atender aos interesses sociais para promover uma recuperação psicofisiológica do indivíduo para que possa retomar suas funções sociais, por exemplo, o trabalho, de forma manter-se produtivo. Contudo, na prática, essa proposta deixa em segundo plano as experiências decorrentes da vivência do lazer, em detrimento do enfoque dado às práticas no TL. Por sua vez, o aspecto utilitarista está diretamente vinculado aos princípios basilares da modernidade, que visam normatizar, controlar e atribuir algo funcional a toda a atividade realizada pela sociedade (Maciel et al., 2018).
Para Dumazedier (1979) o lazer refere-se a um conjunto de ocupações a que o sujeito se entrega de livre vontade, com o propósito de descansar, divertir-se e desenvolver-se após o término das atividades laborais, familiares e sociais. Essa proposta foi denominada como os "3 D's" do lazer. O autor apresentou quatro atributos que estão imbricados ao lazer: 1) pessoal: resultante da liberação de obrigações institucionais, familiares e profissionais, com o propósito de promover o descanso, o divertimento e o desenvolvimento da personalidade; 2) desinteresse: não está vinculado às atividades com um fim lucrativo, com intuitos utilitaristas; 3) hedonismo: busca pelo prazer e alegria imediatos e excitação dos sentidos; 4) liberatório: resultante de livre escolha pelo sujeito.
Sob esse prisma, Dumazedier (1979) categorizou o lazer em cinco campos de atividades que podem ser vivenciadas, simultaneamente ou não, a saber: 1) manuais - relacionadas ao prazer de manipular, explorar e transformar objetos; 2) intelectuais - concernentes à busca de conhecimentos; 3) físico-esportivas - vinculadas às diferentes modalidades de atividades físicas e esportivas; 4) artísticas - relacionadas à prática e/ou assistência nos mais variados leques de cultura; 5) sociais - cujo foco é a busca por convívio social.
Apesar de hegemônico no Brasil, o pensamento de Dumazedier começou a receber questionamentos a partir da década de 1980. A propósito, Gomes (2014) assinala que é cabal superar a concepção de um conceito de lazer unitário e universal. Assim, Marcellino (1990), embora concordasse com diversos pontos apresentados por Dumazedier, apresentou algumas proposições críticas em sua própria teoria que buscavam distinguir-se do autor francês.
Marcellino (1990) ressalta, em sua teoria, duas argumentações básicas, distintas da perspectiva dumazediana: o entendimento do tempo disponível em detrimento do TL, e o lazer como cultura. Para o brasileiro, o tempo disponível é aquele que a pessoa tem para se dedicar livremente a uma atividade de lazer, diferenciando-se assim do tempo do não trabalho, ou seja, TL. No entanto, Dumazedier preconiza que o lazer ocorreria após a liberação de todas as atividades socialmente obrigatórias, portanto, tendo o mesmo sentido do tempo disponível proposto por Marcellino. Em relação a categorizar o lazer como componente cultural, essa alegação é questionável, pois qual prática social não é cultural? (Alves, 2004; Maciel et al., 2018). Essa visão defende o lazer como uma dimensão da cultura, manifesta-se por meio diferentes conteúdos culturais, tais como os físicos-esportivos, manuais, artísticos, intelectuais, sociais, turísticos, a considerar os contextos socioculturais que são vivenciados.
O sociólogo brasileiro nos apresenta quatro abordagens funcionalistas do lazer: romântica, moralista, compensatória e utilitarista (Marcellino, 1990). A primeira enfatiza valores das sociedades tradicionais ou manifesta uma nostalgia em relação ao passado. Na segunda, o lazer é visto de forma ambígua: ora como possibilidade de realização de atividades comprometedoras, do ponto de vista da ordem social, ora como atividade construtiva, benéfica para a tranquilidade moral da sociedade. A terceira é quando o lazer compensa a insatisfação ou a alienação própria do trabalho. Na última, o lazer resume-se à função de recuperação de trabalho ou ao desenvolvimento. Ademais, o referido autor destaca dois atributos para o entendimento do lazer: tempo e atitude - também presentes em Dumazedier.
Cumpre frisar que as atividades de lazer podem tornar-se, eventualmente, vias de acesso ao ócio (Marcellino, 2007), pois, também, preconizam o caráter desinteressado, a busca pela satisfação e o desenvolvimento pessoal. No entanto, o contrário pode não ocorrer, pois o ócio segue uma perspectiva atemporal, enquanto o lazer ocorre somente no TL. Portanto, as subjetividades estão presentes tanto no ócio quanto no lazer; entretanto, essas perspectivas apresentam especificidades (Maciel et al., 2018).
Como se nota, os Estudos do Lazer são abordados de distintas formas, sobretudo, nas visões funcionalista (Dumazedier, 1979) e cultural (Marcellino, 1990). No entanto, para Bertini (2005), ambas assumem uma abordagem utilitarista.
3.3 Sobre o tempo livre
O TL pode ser investigado sob duas perspectivas: uma anterior e outra posterior à Revolução Industrial. No primeiro cenário, segundo Gomes (2004), a sociedade organizou-se de maneira mais livre em relação ao trabalho, pois havia uma dependência direta dos ciclos da natureza, como o nascer e o pôr do Sol, e as estações do ano, que caracterizam, por exemplo, o trabalho agropecuário. Para além desse segmento, os pequenos comerciantes e artesãos tinham maior flexibilidade na administração do seu tempo de trabalho (Melo, 2010). Após a Revolução Industrial, essa percepção de tempo foi modificada, passando a ser controlada pelo relógio de ponto das fábricas, portanto, sob uma égide social (Faria & Ramos, 2014).
Dessa forma, a denominação TL ganhou destaque a partir de sua oposição ao conceito moderno do trabalho fabril (Martins, 2014). Na visão de Sousa e Baptista (2013), ao se examinar minuciosamente o assunto, há necessidade de melhor delimitação do termo. As autoras reiteram que o TL, em seu cariz contemporâneo, resultou de movimentos operários e de lutas políticas que instauraram um tempo de não trabalho, mas articulado com esse último. Gradativamente, foi possível notar a redução das horas laborais e o aumento do TL. Todavia, a classe trabalhadora não almejava um tempo de total autonomia, mas, em grande medida, um tempo liberado das obrigações laborais. Nesse diapasão, segundo Francileudo e Martins (2016), o TL representou uma conquista da classe operária frente à exploração do capital e às péssimas condições de trabalho a que estava submetida.
Por conseguinte, o tempo tornou-se mercadoria e adquiriu valor econômico (Aquino & Martins, 2007). Martins (2014) lembra que o TL, no mundo contemporâneo, calcado no consumo exacerbado, termina por deteriorá-lo, mercantilizá-lo, empobrecendo-o de significados. Em geral, paira sobre os sujeitos uma ambivalente questão: trabalhar ou libertar-se das atividades laborais para gozar de um tempo para si? Cabe situar que na sociedade do consumo, homens e mulheres não são educados para o tempo de nada fazer. Este último seria o tempo verdadeiramente livre, sem que houvesse qualquer interferência externa, portanto, autocondicionado.
Consideramos razoável recorrer às contribuições de Munné (1980), que identificou e sistematizou quatro tipologias referentes ao tempo social, evidenciando a percepção de mais autonomia (autocondicionamento, vinculado à maior possibilidade de satisfação pessoal) e menos autonomia (heterocondicionamento, oposta à primeira percepção), ao longo de quatro periodos de tempo, para cumprir determinadas atividades sociais: psicobiológico, econômico, sociocultural e TL.
O tempo psicobiológico é direcionado às necessidades psíquicas e biológicas dos sujeitos, condicionado a partir de movimentos endógenos. Já o tempo socioeconômico direciona-se a suprir as necessidades econômicas. Este último tempo é quase inteiramente heterocondicionado, com menos autonomia percebida pelo indivíduo. O tempo sociocultural, por sua vez, é direcionado às ações de sociabilidade dos sujeitos. Esta categoria de tempo pode ser tanto heterocondicionada como autocondicionada, havendo um equilíbrio entre os dois polos.
Por último, o TL é entendido como o tempo que deveria ser de total autonomia do sujeito, sem qualquer pressão externa. Em outras palavras, seria o tempo realmente livre, aquele que poderia propiciar experiências de ócio. Estas últimas acabam sendo contaminadas, empobrecendo suas vivências, pois na contemporaneidade busca-se a superficialidade das relações e dos sentidos, que ocorre pela sua mercantilização (Martins, 2014). Assim, destituída de sentidos, as vivências no TL assumem, sobretudo, uma perspectiva meramente voltada à recuperação de forças despendidas nas atividades laborais ou a fugazes momentos de diversão, geralmente associados às atividades funcionalistas como lazer. O TL reduz-se, por derradeiro, a instantes devotados à recuperação para o trabalho ou ao consumo. O tempo, mais especificamente a temporalidade que cada um vive, afasta-se da dimensão psicológica e da experiência íntima, pois passa a ser compreendido sob o viés objetivo e exterior, enquanto mercadoria.
O TL apresenta, no contexto contemporâneo um viés temporal cronológico, resultado da divisão da unidade do tempo, ou seja, socialmente construído (Martins, 2014). Aquino e Martins (2007) pontuam que, no período contemporâneo, a noção de tempo torna-se alterada, tendo em vista que somos acostumados a pensar o tempo como mensurável, mas o percebemos como categoria relativa e subjetiva.
Por fim, ao considerar os apontamentos sobre ócio, lazer e TL, configura-se um desafio refletir dialogicamente sobre essas perspectivas, uma vez que, a partir da Modernidade, a ideia de tempo e de sua utilização e/ou desfrute assentou-se em um conceito determinista e quantificável.
3.4 Ócio e tempo livre: ampliando diálogos
"O ócio é livre, o tempo livre, não" (Aquino & Martins, 2007, p. 489). Este aforismo é fundamental para aclarar o assunto. Constitui falácia considerar o ócio como equivalente ao TL, visto que este último não define a experiência em si. Não obstante os conteúdos referentes ao ócio e ao TL guardem relação entre si, um olhar mais atento indica particularidades teóricas.
Para situar melhor essa questão, Rodríguez (1992) frisa que o TL e o ócio convivem em "mundos diferentes", pois todos os sujeitos podem gozar de TL, mas nem todos podem experenciar o ócio. Enquanto o primeiro refere-se a determinada forma de caracterizar uma classe de tempo, o segundo representa uma forma de ser, portanto, relacionado com o aspecto ontológico do ser humano (Francileudo, 2013; Maciel et al., 2018).
Conforme Rodríguez (1992), o ócio não se restringe ao tempo cronometrado ou do relógio, mas diz respeito a um estado perpassado pelo âmbito subjetivo, sendo, de fato, livre, atemporal. Nesse sentido, o tempo e a atividade em si não determinam uma experiência de ócio, pois esta é subjetiva a partir das individualidades e intencionalidades de quem a realiza (Monteagudo et al., 2013). Em outros termos:
El tiempo libre pertenece al mundo cuantitativo, es susceptible de ser presentado con un carácter de cientificidad, medido, determinado y erigido en muestra del bienestar de una sociedad. Pero el tiempo libre, por ser tal, existe con la misma presión temporal que cualquier trabajo enajenado, al contrario del ocio […] El tiempo cronometrado no puede ser libre. (Rodríguez, 1992, p. 175).
Ademais, Cabeza (2016) sustenta que o TL, como ausência das obrigações, refere-se a uma modalidade de tempo calculável, ao passo que o ócio é uma forma de ser. Segundo esse autor, infelizmente, a experiência do ócio é pouco alcançada na sociedade contemporânea. Essa experiência está no âmbito da liberdade, da autonomia, do gratuito, do subjetivo, livre dos condicionantes sociais, mas marcada pelo modo de viver de cada sujeito (Francileudo & Martins, 2016). A experiência de ócio tem sua razão, portanto, em si mesma. Consequentemente, cada sujeito apropria-se do seu tempo de distintas maneiras, como apresentado por Munné (1980), ao propor o tempo autocondicionado.
Em síntese, o ócio é atemporal, autocondicionado, permeado pela intencionalidade, pela subjetividade, pela livre escolha e pela satisfação do desfrute da vivência. Já o TL, primeiramente, assume a centralidade do trabalho na vida do ser humano, e, posteriormente, a liberação das demais funções sociais, consideradas como obrigatórias, para poder desfrutá-lo.
3.5 Ócio e lazer: ampliando diálogos
Segundo Martins (2016), o lazer surge sob a égide do tempo liberado do trabalho e, consequentemente, não livre em termos subjetivos. No senso comum, o ócio, assim como o lazer, representa o lugar dos vícios, da vadiagem e da preguiça (Francileudo & Martins, 2016).
No entendimento de Baptista (2016), os Estudos do Lazer advêm da tradição anglo-saxônica, ao passo que os Estudos do Ócio provêm do legado ibero-americano. A autora complementa que ambos os estudos entrecruzam-se, destacando três eixos básicos: 1) a problematização do conceito de lazerócio em articulação com os conceitos de trabalho e tempo; 2) o conhecimento das efetivas práticas sociais e culturais de lazer-ócio; 3) políticas para o desenvolvimento do lazer-ócio. Por sua vez, Maciel et al. (2018) apontam que, enquanto os Estudos do Ócio, em grande medida, têm a Psicologia Social como base, atendo-se às subjetividades em diferentes tempos sociais, os Estudos do Lazer debruçam-se no viés da Sociologia e guardam relação com as atividades realizadas no TL enquanto conquista social.
Ainda nessa perspectiva, estudiosos como Aquino e Martins (2007) e Martins (2014) fazem distinções acerca do lazer e do ócio. Para esses autores, a autonomia é um dos elementos centrais que permeia essas concepções, haja vista que o ócio é a vivência atemporal com um fim em si mesma, enquanto o lazer limita-se ao TL ou ao tempo disponível (Dumazedier, 1979; Marcellino, 1990).
Sendo assim, ócio e lazer apresentam perspectivas distintas, mas que se relacionam. Tal diferenciação é fundamental para evitar eventuais limbos teóricos neste e em outros trabalhos. Muito mais que disputa de campos, ambas as perspectivas podem e devem estabelecer diálogos fecundos (Maciel et al., 2018). A nosso sentir, é no diálogo que as ambiguidades são esclarecidas. É no diálogo que podemos lançar novos olhares sobre o ócio e o lazer. Enfim, é no diálogo que estendemos as discussões, elaboradas no seio da Academia para o senso comum.
4. Considerações finais
Este trabalho tem por objetivo analisar as especificidades das perspectivas do lazer, do ócio e do TL no contexto brasileiro. A discussão realizada apresenta, ainda que de forma sucinta, peculiaridades que permeiam cada área, contribuindo para dirimir incompreensões ainda existentes. Ademais, reconhecemos a legitimidade e a possibilidade de diálogo entre as três perspectivas. Todavia, não se teve, pois, o intuito de estabelecer cisões entre os conceitos, ainda que, por questões didáticas, houve a necessidade - em determinados pontos do texto - de apresentá-los separadamente.
Cabe destacar que, a fim de evitar digressões, cingimo-nos a algumas concepções teóricas, em virtude do diversificado leque conceitual existente sobre a temática em questão. Por essa razão, este texto apresenta, em certa medida, limitações por analisar proposituras teóricas de uma parcela específica de autores, especialmente os mais difundidos no cenário brasileiro. No caso do lazer, circunscrevemos as concepções basilares defendidas por Dumazedier e Marcellino. Não obstante, reconheçamos os avanços das ideias de outros teóricos no cenário nacional ao longo dos últimos anos. Diante das diversidades de perspectivas presentes ao discutir a temática em questão, entendemos que alguns aspectos devem ser convocados à reflexão para o seu avançar, apresentados a seguir.
Apesar da relevância dos aspectos filosóficos sobre o ócio, originalmente desenvolvidos na Grécia Antiga, destacamos a necessidade de compreendê-lo para além da clássica perspectiva helênica. Como visto, o ócio, na atualidade, proposto por Cabeza, embasado, sobretudo, na Psicologia Social, e desenvolvido por representantes de estudiosos ibero-americanos, é entendido como componente subjetivo, centrado nas experiências e não na vivência de uma atividade realizada no TL. Portanto, apresenta caráter atemporal, podendo ocorrer em qualquer contexto social. Essa abordagem considera essencialmente os sentidos atribuídos por cada pessoa para determinar se uma vivência será caracterizada como ócio, ou não. Noutros termos, o protagonismo é assumido pelas subjetividades, pelos sentidos, sentimentos decorrentes das experiências, da satisfação gerada, e não pela atividade em si. Ademais, as experiências advindas do ócio autotélico têm como foco promover o desenvolvimento humano, em detrimento de um mero preenchimento do tempo, da fuga do tédio, ou qualquer perspectiva funcionalista.
Embora o ócio esteja disponível a todas as pessoas, nem todas são capazes de desfrutá-lo, pois, ainda, estão limitadas à prática de atividades que buscam uma excitação dos sentidos, uma superficialidade das emoções. Dessas atividades, destacam-se, sobretudo, os divertimentos destituídos de sentidos e valores que possibilitem transformação pessoal. Diante do exposto, a perspectiva do ócio autotélico difere à do lazer e do TL.
O lazer, no caso, tendo, incialmente, como principal aporte teórico a Sociologia, surge a partir das transformações socioeconômicas decorrentes da Revolução Industrial, notadamente, do tempo do trabalho e do não trabalho-assimilado como fenômeno moderno e caracterizado por Dumazedier como um conjunto de atividades realizadas no tempo livre, buscando promover o divertimento, o descanso e o desenvolvimento pessoal de forma desinteressada. No entanto, diante do seu aspecto funcionalista, o surgimento do lazer está associado à necessidade individual em compensar o desgaste psicofisiológico decorrente do trabalho e do preenchimento do TL.
Ao propor uma perspectiva crítica do lazer, Marcellino concebe-o como componente cultural, visto como meio de emancipação e resistência social, realizado num tempo disponível. Esse, para o referido autor, distingue-se do TL por considerar a necessidade de um tempo autocondicionado. Em outras palavras, o lazer como prática social, segundo esse sociólogo, é construído pelas relações culturais permeadas pela sociabilidade, produzindo uma ressignificação das atividades, assumindo perspectiva crítica para a formação cidadã.
Ambos os autores, baseados na Sociologia do lazer, consideram-no como fenômeno decorrente da sociedade moderna, ressaltam a necessidade de uma temporalidade para a sua prática, isto é, um tempo livre das obrigações sociais.
Embora haja similaridades entre as temáticas do ócio, do lazer e do tempo livre, não se deve desconsiderar suas peculiaridades, incorrendo em negligências epistemológicas, teóricas e socioculturais, onde se dão suas vivências. Assim, entendemos que se deve considerar o contexto histórico, regional e cultural adotado como recorte para realizar as análises de acordo com as problematizações elencadas. Dessa forma, é importante, outrossim, considerar a importância da diversidade de grupos de pesquisas e áreas de conhecimentos que investigam a temática, a fim de elucidar imprecisões.
Isto posto, ressaltamos a importância das instituições que congregam pesquisadores dessas diferentes perspectivas, as quais devem promover a organização de encontros, seminários, congressos, cursos e outras reuniões, com o objetivo de incentivar o intercâmbio e a cooperação entre associados, a sociedade civil, órgãos governamentais e demais interessados, para o desenvolvimento das áreas. Essas ações podem abordar os problemas comuns e ampliação do conhecimento mútuo sobre pesquisas em andamento, assim como elaborar documentos de posicionamento sobre temas relevantes para o entendimento dos avanços científicos do ócio, do lazer e do tempo livre.
Tendo em vista essas orientações basilares, os diferentes grupos de pesquisas e seus respectivos investigadores terão um norte e mais clareza quanto às questões que envolvem as temáticas. Acreditamos no desenvolvimento de diálogos, visando a sanar lacunas ainda presentes no cenário acadêmico.
Ao considerarmos os argumentos apresentados ao longo do texto, esperamos que a compreensão sobre os assuntos ora discutidos será aprimorada quanto mais intensos e profundos forem os estudos que os tiverem como objeto. Tal como Sísifo3 e seu mitológico desafio, não podemos esmorecer em face desse imenso rochedo de peculiaridades. O caminho que se apresenta aos estudiosos brasileiros do lazer, do ócio e do TL há de ser trilhado pelo diálogo. Enfim, é no diálogo que reside o campo mais fértil para a construção do conhecimento.
Notas
2 Fonte: https://houaiss.uol.com.br
3 Sísifo, na mitologia grega, foi condenado por Zeus a empurrar eternamente uma pedra, que rolava ladeira abaixo após se aproximar do cume.
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